por Benjamin Teixeira.

Como já tive oportunidade de revelar, é de meu avô materno Clóvis Mozart Teixeira, o Teixeira que uso, pois que, quando comecei a publicar artigos na imprensa, em 1990, precisava me distinguir de meu pai, catedrático conhecido, professor universitário em Aracaju desde o ano seguinte ao meu nascimento.

Há quase 25 anos atrás, perdi meu primeiro ente querido desta encarnação. Foi uma experiência diferente. Meu avô, o primeiro engenheiro civil da cidade, sofreu, no correr de mais de dois anos, de um câncer renitente, que lhe carcomeu o organismo, a partir do estômago. Para a época, sua sobrevida foi enorme. Teria vivido 7 meses, como prognosticaram os médicos, e acabou vivendo mais de dois anos, após o diagnóstico, sinistro por aqueles dias, lutando contra a moléstia insidiosa, brigando pela vida, convicto de que não existiria vida após a morte, com a profunda formação científica clássica que tinha.

Na madrugada de Natal de 1979, naquela Aracaju ainda pacata e tranqüila do final dos anos 70, o querido pai de minha mãe desencarnou, angustiado. Era o seu dia preferido no ano. Na noite anterior, como tradição de família, estivemos todos lá, filhos, netos e todos os agregados. A casa estava cheia. Fazia parte da turma das crianças (tinha nove anos recém-completados) e me recordo da preocupação das tias mais velhas e de minha mãe em pedir que não fizéssemos barulho, porque vovô estava bem “doentinho”. Vovô quase não falou naquela noite. E não me deixaram mais me aproximar dele. Sussurros, lágrimas. Mas a festa aconteceu, porque ele não suportaria que não acontecesse a festa de Natal. Um sistema de som fora improvisado próximo ao leito, e uma seleção de discos de vinil feita por mamãe (a mais entendida em música clássica da família) era executada, em volume baixo, para lhe oferecer alguma tranqüilidade, em meio ao vexame das dores.

Recordo-me ainda do telefone tocando em nossa casa da Rua de Própria, naquele início de manhã de Natal. Puxei o gancho e ouvi a voz de vovó Ildete dizer, bem pausadamente, na forma irritante para mim, na época, de tratarem-me como idiota, por ser criança:

– Benjaminzinho, diga à sua mãe que a hora já chegou, está entendendo? Repita para sua avó.

Vovô morreu, pensei comigo, num sobressalto, e ela pede para eu repetir a frase, Ughrr!

– Sim, vovó, já entendi.

– Não, meu filho, repita a frase.

Obedeci à minha avó. Era obediente por aqueles dias. Hoje, os mentores espirituais sofrem bem mais comigo do que padeceram meus pais e mestres no passado.

– Mamãe! Mamãe! Vovô Clóvis morreu! Vovô Clóvis morreu! Vovó mandou dizer que “chegou a hora” – repeti, como um “bom menino” – e está ainda no telefone esperando por você.

Mamãe imediatamente debulhou-se em lágrimas discretas, atendendo a vovó, falando ainda em meio a códigos, no intento de me ocultar o que já havia deduzido – que inferno para mim!

– Eu vou! – disparei quando mamãe depositou o fone sobre o aparelho que exibia, naquele tempo, o famoso disco com os números.

– Não, não é lugar de criança!

Aquilo era demais! Havia perdido meu companheiro de férias, que me respondia às questões que todos me recusavam a responder (loucuras como: “De que forma a cicratização acontece?” – ao que vovô respondia com paciência, com seu conhecimento enciclopédico), morrera o querido pai de minha mãe, e me proibiam de ir-lhe fazer a visita final! Ignorei a proibição, esperei mamãe sair de carro com papai, para que não arranjassem uma forma de me impedir sair de casa, troquei a sandália por uma alpercata, e, de “short” mesmo, peguei a bicicleta e lancei-me à via pública, chorando todo o percurso até a casa de meu avô, há pouco mais de meio quilômetro dali.

Mamãe não se surpreendeu muito. Era típico meu, em certas circunstâncias-limite, eu apresentar, na “maior cara lisa”, um surto de desobediência. Era minha área de “indecência”, supunha comigo e, assim pensando, muito me culpava por ser “tão mau”. Nunca mentia, mas, de vez em quando, desobedecia acintosamente os adultos, sem nem sequer ocultar os maus-feitos, como, por exemplo, dava a entornar latas inteiras de leite-condensado, goela a baixo, enquanto mamãe atendia a uma visita. Depois, mal fechava ela a porta e se despedia do visitante, lá estava eu com a lata totalmente limpa, exibindo-a para ela, com uma enorme cara de: “Por favor, não me puna por isso”, e, é claro, uma longa série repetida, em tom bastante lânguido de: “Desculpe, mamãe! Desculpe, mamãe! Desculpe, mamãe!” Era comum ver o imenso esforço que minha mãe fazia para não cair na gargalhada de chofre. Normalmente, porém, ela dizia:

– Meu filho, você parece uma criança esfomeada. Está com fome? Quer almoçar de novo?

Hoje, eu dou umas boas risadas, lembrando-me da cena, junto a alguns dos meus leitores, provavelmente, mas, por aquele tempo, eu, pelo mesmo motivo, me sentia um lixo. Que ser abominável deveria ser eu, aquela criança que já sabia abrir latas e andava devorando a dispensa, a cada vez que a mãe dava as costas, com um faro de detetive, todo especial, para descobrir os novos lugares secretos que minha mãe inventava para esconder… é claro!: as latas de leite condensado!

Bem, mas o tema era triste e eu dei toda essa volta só para dizer que eu era um perigo quando criança e, principalmente, “chato”. Tudo eu perguntava, e quase nunca me respondiam, o que me deixava extremamente deprimido, com sentimento de rejeição acentuado. Somente vovô sempre me respondia a todas as questões. Mais tarde, compreendi que só vovô respondia porque os adultos em torno de mim, regra geral, não tinham resposta para, digamos: como a televisão funcionava ou como o avião se mantinha no ar, indagações-padrão que me saiam da boca-metralhora, volta-e-meia. Por isso, sentia-me tremendamente “burro”, porque supunha estar perguntando coisas tão bobas que ninguém sequer se dava ao trabalho de me responder.

Adorava a casa de vovô exatamente por isso. Acordava cedo, nas férias, e pegava minha bicicleta para pegar o momento do desjejum dos dois: ele e vovó. Vovô ingeria seus ovos semi-cozidos, em movimentos quase-contemplativos, parecendo um monge em meditação, e eu comia sem ninguém reclamar da quantidade, enquanto vovô me falava de Ciência, tudo, absolutamente tudo que eu perguntava! Era maravilhoso! A cozinha deliciosa de vovó, a confeiteira mais famosa da cidade, e a sabedoria de meu avô, certamente um dos homens mais cultos do Estado, que vivia entre seus livros em diversos idiomas e a revista americana “Time” (não consigo imaginar que alguém mais em Aracaju, à época, lesse a Time todas as semanas). Terminado o café-da-manhã, íamos para o seu gabinete. Ele se sentava no mesmo birô que utilizo hoje, em meu escritório, e eu me aboletava próximo a ele, com papel e lápis, para desenhar meus “projetos”. Isso me provoca boas risadas hoje, mas eu adorava me imaginar como um cientista ou tecnólogo projetista, inventando máquinas mirabolantes, para “salvar a humanidade”, é lógico (risos de novo). Só sofria de um problema psicológico crônico: a frustração-teimosia-delirante de querer realizar os projetos, levando-os a sério, em vez de encará-los como uma fantasia, tal como a “máquina emissora de raios anti-gravitacionais”: nestas exatas palavras – dá p’ra imaginar? (é ótimo rir com a gente mesmo!). Como se percebe, fui uma criança muito infeliz. Terminava de rabiscar os esquemas de meu novo projeto – quando vovô estava prestes a desencarnar estava trabalhando no “cinturão mágico”, para captar luz solar, por meio da fivela e transmitir força descomunal ao seu portador (risos mais altos) – e então mostrava a ele o resultado de meu trabalho, para que ele desse seu parecer. Lembro-me quando vovô disse, após dar uma discreta e misericordiosa risada, e para meu grande desgosto, que se a fivela pudesse captar tanta energia quanto eu desejava, o portador do “cinturão mágico” seria “carbonizado” – uma nova palavra que precisei incorporar ao meu vocabulário infantil, para entender o que vovô me dizia. Os demais adultos a quem confiava meus prospectos não se davam ao trabalho de agir com a dignidade que vovô tinha: explicando-me o óbvio. Era aquilo que eu gostava em vovô. Ele me levava a sério, tanto quanto eu levava o meu projeto novo, após desistir de ser projetista de veículos (esse sim, impressionava mais meu pai)

Vovô se foi e exigiu-me algo novo: descobrir as respostas por mim mesmo. Era fantástico ter alguém que me respondesse a qualquer pergunta que fizesse, às vezes de uma forma muito superior à que eu podia compreender (o que me esquivava de externar, com medo de reforçar minha “fama” – imaginava eu – de “burro” – descobri depois que meu avô me julgava um gênio-mirim). Com o desaparecimento dele, comecei a folhear, com mais gosto, os livros da biblioteca de meu pai, outro homem muito instruído (mas menos paciente com meus interrogatórios). Ficava triste: era comum descobrir palavras de que não conhecia o significado e, em vez de buscar o dicionário, supunha que era uma prova, mais uma vez, de como portava uma inteligência limitada, em vez de cogitar de ser novo demais para as pesquisas que fazia. Lembro-me da tristeza que me assolou, quando mamãe me proibiu de abrir um manual de psicologia – creio que ela tenha tido receios de que me defrontasse com algum tema impróprio à minha idade – o livro ficava fora do alcance de minhas mãos, ainda que subisse em uma cadeira. Mas, com o tempo, embora com dificuldade, fui desenvolvendo o gosto pela leitura, que só se me instalou como hábito, de fato, já aos 18 anos de idade (até lá só fazia consultas periódicas, estudando livros aqui ou ali, mas não como um hábito diário).

As pessoas costumamos lamentar a partida de entes queridos, pelo processo inexorável da morte ou das diversas outras formas de afastamento ou ruptura relacional, como mudança para outras cidades, divórcios, término de amizades, etc. Todavia, é graças a esses mecanismos, que somos impelidos a desenvolver, dentro de nós, os aspectos construtivos, as funções psicológicas e os papéis desempenhados por aquelas pessoas, no drama de nossas vidas, no concerto de nossa evolução. Assim, introjetamos valores importantes, que não seriam desdobrados de outra forma, se não fosse a perda brusca, a ruptura traumática da morte ou do distanciamento de um ente amado e importante.

Por muito tempo senti fortes saudades de vovô Clóvis. Na infância, já dotado de mediunidade embrionária, sentia-lhe a presença, volta-e-meia, embora considerasse tratar-se de fruto da imaginação, como quando lhe sentia, vários anos após sua morte, o odor característico de sua pele, quando mais distraído estava em outros afazeres, o que me fazia parar o que estava fazendo e exclamar, cheio de saudade:

– Vovô???

Raramente, na minha infância e adolescência, vi ou ouvi espíritos. Por isso, somente nos últimos anos, pude, aqui ou ali, retomar alguns contatos mais diretos, com meu tão querido avô, tendo ele, inclusive, já psicografado textos (embora poucos), por meu intermédio, neste site mesmo publicados, como “Duas Engenharias”. Hoje, volta e meia, ouço-lhe a voz rouca, em tom baixo (embora não fosse muito grave), que lhe era típica, sussurrar à acústica de minha mediunidade, vindo me fazer companhia nas noites solitárias de minha casa (moro só), com seu largo sorriso sereno de homem sábio e bom.

Sinto enormes saudades de vovô e muito lamento não ter podido conviver com ele, durante os anos de minha adolescência e os primeiros anos de minha mocidade. Provavelmente, o curso dos acontecimentos teria sido diferente. Teria sofrido menos crises existenciais, teria sido mais feliz, talvez, mas… com toda certeza, teria amadurecido bem menos. Vovô reencarnou em 1902. Se houvesse sido longevo como Barbosa Lima Sobrinho, o grande jornalista brasileiro que faleceu recentemente, aos 104 anos de idade (totalmente lúcido, ainda publicando, semanalmente, uma coluna no “Jornal do Brasil”), teria hoje ainda o querido pai de minha mãe ao meu lado. Talvez, todavia, eu ainda fosse o pequeno garoto perguntador, crescido no corpo, mas inibido no espírito, pela presença imponente da cultura de meu cultíssimo avô. Nada acontece por acaso, e as maiores graças de Deus costumam advir-nos travestidas de aparente desgraça. Graças à perda de meu avô, quando tinha 9 anos, pude me tornar um auto-ditata de diversos assuntos filosóficos, esotéricos e espirituais (estudos que provavelmente teriam sido coibidos pela influência científica-materialista de meu avô), tornando-me, assim, um propagador das idéias espíritas já na casa dos 19 anos.

Vovô! Obrigado por ter existido em minha vida. Mas muito mais obrigado, ainda, por ter desaparecido depois, logo após me acicatar o gosto pelo saber, para que eu mesmo buscasse saciar minha sede intelectual, sem intermediários. Com a perda de sua presença, talvez houvesse me perdido. Graças a Deus, me encontrei. Com sua presença, porém, talvez fosse certa a minha perda, não porque fosse má sua presença, mas porque fosse neutralizante para a presença de minha própria alma, propósito e vocação! Assim, vovô, agradeço, a Deus, ter merecido tê-lo comigo por nove anos, mas, principalmente, por tê-lo perdido, nos últimos vinte e cinco!

(Texto redigido em 26 de fevereiro de 2004.)