Benjamin Teixeira
pelo espírito
Gustavo Henrique.

Há alguns bons anos atrás, estive numa fazendola do interior de Minas Gerais. Uma jovem soluçava, pranto convulso. Olhou-me sem me ver, pelas captações sutis do pensamento, e, notando-me a presença, intensificou suas preces, deblaterando contra o destino. Estava grávida. Era solteira, tinha acabado de completar 18 anos, não tinha como se sustentar, vivia do trabalho do pai, um humilde pomicultor, enquanto se devotava aos afazeres domésticos, secundando a mãezinha na educação de cinco irmãozinhos menores. O que faria? Sabia que não haveria perdão para ela. Pior que tudo: o Zeca, o rapaz que a engravidou, apenas um ano mais velho, não estava disposto a assumir a responsabilidade, jurando que negaria tudo, se ela ousasse divulgar o ocorrido, terminando a conversa lacônica e fria com a sugestão de que praticasse aborto.

Cecília não tinha formação moral e religiosa que lhe permitisse fazer aquilo, mas estava se sentindo quase obrigada a cometer o gesto nefando de assassínio de seu bebê. Consultou os bolsos, trouxera um pequeno exemplar do Novo Testamento, abriu ao acaso e encontrou a passagem em que Jesus falava das aves do céu, que não semeiam nem colhem, mas que o Pai do Céu alimenta, ainda assim. A proposta de fé confortou-a por alguns momentos, mas logo sua mente voltou a anuviar-se. Duas sombras sinistras envolviam-na, da outra dimensão da vida, soprando-lhe, na acústica do pensamento, idéias de desespero e morte.

“ – Você poderia se matar. Não tem saída. Já pensou se, depois do aborto, descobrirem que você estava grávida? Se houver um sangramento, por exemplo, e você tiver que parar no hospital e lá descobrirem tudo, e os médicos, é claro, disserem a seus pais? Além do quê, você já não é mais virgem, agora é tarde. O Zeca não quer nada com você, só que ninguém vai querer uma mulher que não é mais ‘moça’. Um dia, alguém descobrirá que você não é ‘pura’, que foi maculada e usada por outro. Então, será a desgraça, a vergonha para a família, o desterro da terra natal, sem direito a olhar para trás e voltar para dizer adeus, e viver… certamente, como prostituta, porque não lhe sobrará outra alternativa. Então, por que esperar que as coisas piorem? É melhor dar logo um fim a tudo isso!”

Tentava, de toda sorte, cortar a influência das duas entidades tenebrosas, que lhe instilavam idéias suicidas, insuflando-lhe pensamentos de conforto e otimismo, mas Cecília, simplesmente, não me dava trela. Completamente hipnotizada pelas sugestões de medo, todo o seu organismo já denunciavam o estado de desespero, com arritmia cardíaca e respiração ofegante, mãos enregeladas, fronte suarenta… um suor frio… macabro, prenunciando a morte.

Eusclépios, nosso amigo desencarnado, estava a meu lado. O grande mentor desencarnado, que desceria à Terra através de Cecília, por meio daquele minúsculo gérmen implantado em seu ventre, lamentava tremendamente a situação, e me auxiliava no socorro a sua eventual futura mãe.

“ – Querida mãe, não faça isso. Quero vir por você ao mundo” – emitia ele, com vigor, para sua sensibilidade feminina, tentando demovê-la das intenções auto-destrutivas. Mas Cecília continuava irredutível. Caminhou, assim, como um zumbi, na direção da estrada, queria ser atropelada: seria simples e rápido, supunha. Atravessaria a rodovia movimentada que passava pelas cercanias do sítio singelo, sem olhar para os lados, ignorando os avisos da audição para a aproximação de veículos. Caminhou, passos certos, mas mecânicos, como se estivesse teleguiada, e andou sobre o asfalto, escutando, ao longe, um carro aproximar-se, e que começava a buzinar com insistência. Resolveu sentar-se, e aguardar a sua sorte, pondo-se de costas para a direção de onde vinha o automóvel. Cecília notou que as buzinadas cessaram, logo que ela se sentou, e imaginou que o motorista, supondo tratar-se de uma armadilha para assalto, de fato a atropelaria. Mas eis que, ao reverso, notou, ainda pela audição, que o carro diminuía a velocidade e que estacionava, bem perto de si, no acostamento. A porta se abriu e fechou. “Droga!” – pensou consigo: “Um idiota solidário. Não pedi ajuda a ninguém!” – continuou em seu solilóquio ingrato e blasfemo, sem mover um músculo porém.

– Eu acho que eu deveria ter atropelado você. Assim não correria a tentação de me apaixonar. Não imaginava que beldades assim pudessem pensar em tirar a própria vida…

– O que lhe leva a crer que tenho essa intenção? – respondeu, em tom monocórdio, uma Cecília entediada.

– Não sei se percebe que parece óbvio, sentando-se no meio da rodovia, por resposta a buzinadas numerosas e longas. Só que achei sua atitude covarde e irresponsável, porque, como não tem coragem de fazê-lo por si mesma, quer comprometer alguém, fazendo-o um assassino.

Cecília sentiu-se fulminada por um raio, tirada de imediato, de seu torpor por aquelas palavras inesperadas, e voltou-se, bruscamente, para o estranho com quem conversava, e, pretendendo explodir num surto de raiva, em que se convertera instantaneamente sua depressão, foi congelada em seu impulso, ao bater os olhos no homem mais lindo que ela tinha visto em toda sua vida. Um belo moreno claro com sorriso luminoso e lindos olhos verdes deixaram-na de boca aberta, sem conseguir dizer nada.

– A senhorita me faria a gentileza – disse o galã impecável, estendendo a mão direita em sua direção.

Cecília, pernas “bambas”, vacilante, mas sem conseguir resistir àquele anjo hipnótico, estendeu sua destra e se permitiu levantar.
As vestes do jovem eram da última moda, tinha um penteado perfeito, e exalava um perfume encantador.

– Posso lhe convidar para um passeio a pé? Deixemos meu carro para trás.

Cecília não teve curiosidade de olhar para checar o modelo. Não conseguia tirar os olhos do jovem e guapo interlocutor. Só conseguiu assentir com a cabeça, e pôs-se ao seu lado, caminhando ambos pelo acostamento largo.

– Sabe, Cecília, eu ando por aqui há muito tempo. Serei dono de grande parte dessas terras. Inclusive da pequena, de seu pai.

Embora sem entender como o estranho já sabia seu nome e quem era, Cecília sentiu um frio de indignação percorrer-lhe o estômago. “Só podia ser: um grã-fino arrogante e pretensioso que veio dar uma de mocinho e me humilhar ao fim” – pensou consigo, revertendo quase de todo o quadro de encantamento do primeiro instante.

– Olhe aqui, Sr. seja lá quem for, eu não estou interessada em obter ajuda, e não me interessa quem você seja, ou o que pretenda. Não lhe perguntei nada.

– Você fica linda quando está brava! – restringiu-se a dizer o charmosíssimo acompanhante, com um sorriso ainda mais luminoso, os olhos verdes e expressivos faiscantes de carisma.

Cecília corou, perdendo o fio do raciocínio e sentindo-se, novamente, confusa e hipnotizada pelo encanto do rapaz.

– Eu sei que essa conversa é estranha, para você, mas creia que é a mais pura verdade. Eu tenho grande responsabilidade com essas terras, e preciso de sua ajuda para dar continuidade ao projeto que vai renovar toda a região. Serei um empresário da região e político também.

“Só faltava essa, um Mauricinho-filhinho-de-papai que vem de Belo Horizonte, comprar tudo e se dizer redentor do lugar! P’ra completar vem pedir minha ajuda, dizendo que sou importante p’ra ele. Que cantada mais barata! E por que eu não consigo reagir??! Que idiota e tola que eu sou! Foi por isso que o Zeca me enganou tão fácil.” – pensava quase em voz alta, Cecília.

A essa altura, porém, como se ouvisse os pensamentos da moça, o homem desconhecido parou onde estava e olhando firme no fundo dos olhos da moça, disse-lhe, em poucas palavras:

– Não tenho muito tempo para falar com você, mas posso lhe dizer que nada acontece por acaso e que, realmente, você tem muita importância p’ra mim, e para favorecer tudo que vim fazer por aqui, porque, Cecília, VOCÊ É MINHA MÃE…

E, dito isso, deixando Cecília arrepiada e em estado de choque, o rapaz simplesmente desApareceu à sua frente, instantaneamente, debaixo do sol forte de 3 horas da tarde. Ato contínuo, Cecília voltou-se para trás, e olhou para onde deveria estar seu carro, já que eles tinham andado poucos metros em linha reta, e, simplesmente, não havia nada, nem ninguém.

Uma explosão atômica no lugar teria efeito menor para a moça simples do campo, embora inteligente e arguta. Em instantes, quando de fato se deu por conta de si do que tinha acontecido, percebeu, pela memória, em que se tinha registrado indelevelmente a imagem do companheiro estranho de quem se esquecera de perguntar o nome, nos traços do rosto do rapaz, elementos das linhas do rosto de Zeca e de sua família também. Ele, sim, sem dúvida, teria tudo para pertencer, pela semelhança fisionômica impressionante, a seu próprio sangue. Instintivamente, Cecília pousou a mão sobre o ventre e se desculpou, entre lágrimas copiosas, ao lindo homem que seria seu filho, olhando em seguida para o céu, agradecendo a Deus pela linda prova de amor e de assistência que recebera, prometendo nunca mais voltar a cogitar tirar a própria vida, disposta que estaria a suportar todos os sacrifícios para que aquele impressionante e inteligente rapaz, que viria ao mundo para fazer grandes coisas, pudesse chegar em paz e ser feliz, com uma mãe amorosa e justa.

E, de fato, Eusclépios, que tudo fizera, por sua grande evolução, em estado de parcial liberdade espiritual, por ainda estar o feto pouco desenvolvido, renasceu sete meses depois, com outro nome, cresceu forte e bonito, tomando todas as feições que exibira, na juventude de sua mãe, naquela desesperada e inesquecível tarde de inverno. O menino nasceu e houve escândalo, dificuldades inúmeras para Cecília, mas um homem bom a desposou poucos anos mais tarde, levando-a a morar na cidade mais próxima, onde o primogênito de Cecília, que viera, de fato, para grandes realizações, educou-se até o fim do 1o grau, depois indo graduar-se em Direito, na capital mineira, voltando em seguida à terra natal, tornando-se Vereador e depois deputado importante na capital, vindo a trazer inúmeros benefícios para a região. Adquirindo fortuna, e partilhando-a com a multidão, tornou-se uma lenda viva naquelas paragens, e, ainda hoje, homem de meia idade, segue fazendo o bem, como um grande missionário do progresso e da paz, na cidade do interior mineiro, onde foi prefeito por mais de uma vez, visitando diariamente sua mãe amada, filho amoroso e devotado, como um exemplo raro de profunda dedicação filial, muito mais, enormemente mais que os outros três que teve com o homem que a desposou.

Eusclépios conseguiu descer ao plano físico de vida… mas muitos como ele, grandes missionários ou apenas almas sofridas e carentes, sequiosas da oportunidade de um corpo, para seu progresso e melhora íntima, não têm tido a mesma sorte… lamentavelmente… porque o aborto, mais que todas as guerras somadas, tem ceifado mais de 4 milhões de vidas humanas, todos os anos, somente no Brasil… vidas que poderiam ser tudo que se pode imaginar e muito mais do que não se pode conceber…

(Texto recebido em 1 de junho de 2003.)