O episódio que vou narrar ocorreu no início do século, por ocasião de um dos primeiros Natais do milênio.

Beatriz1, minha mãe espiritual reencarnada há alguns decênios, se encontrava, à época, em seu primeiro casamento. Era-lhe habitual passar as festas de final de ano em casa de seus sogros, residentes em cidade do interior do Nordeste brasileiro.

Na viagem que utilizo como foco de minha atenção, neste artigo singelo, aquela que por várias vezes recebeu-me em seu ventre, como mãe biológica (e igualmente como pai, em algumas existências), estava acompanhada também de sua irmã caçula, Tereza, a quem sempre considerou uma filha do coração, nutrindo especiais ternura e zelo para com ela.

Túlio, o então marido de mamãe, homem de difícil trato e traços refinados de crueldade, comprazia-se em demonstrar inclinações românticas a Tereza, em frente da esposa, além de ficar falante com a cunhada, ao passo que era habitualmente resistente ao diálogo com a consorte.

Beatriz ficava consternada, porque, tanto quanto seu companheiro, a irmã lamentavelmente também era uma pessoa desalmada, de sorte que não só não se importava com a admiração do cunhado, como se deleitava em se ver privilegiada por ele, rindo-se sadicamente, a ponto de gargalhar, sempre que mamãe tentava participar das conversas entre os dois. Beatriz o fazia apenas para estar em família, sem nenhuma intenção de disputa com Tereza ou preocupação em ser posta em segundo plano, porquanto era movida pelo sentimento de maternidade que devotava à irmã-filha. A falta de coração por parte dos dois é que a entristecia… entristecia-a deveras…

Apesar de dotada de funções mediúnicas muito ativas, mamãe não me havia percebido ainda as visitas frequentes por aqueles dias, como é comum acontecer com médiuns reencarnados(as) – só notam pequena fração do que se desenrola em torno deles(as). Trata-se de uma providência importante, favorecida por Mestres(as) da Espiritualidade Superior, para que não se sobrecarreguem essas psiques já normalmente oneradas com as pressões mentais díspares, provindas de muitas criaturas simultaneamente, tanto de dentro quanto de fora da matéria densa. Somente na metade da década posterior (em 2014, para ser preciso), ela me vislumbrou a presença e entabulou conversação comigo, pela primeira vez.

Embora Beatriz não me visse, estive com ela naquela viagem, conforme mencionei acima, e pude acompanhá-la, como assistente de outros(as) Espíritos Amigos – que haviam sido enviados pela grande Sophia de Alexandria, o Guia Espiritual dela e das atividades que ela desdobra na dimensão material de existência –, a fim de lhe dar cobertura na tarefa familiar complicada de visitar a casa dos pais do cônjuge.

Ambos os sogros reprovavam a relação dela com Túlio e, pior, compraziam-se com a perspectiva de o filho revelar interesse em se envolver com a irmã de mamãe. Uma sequência bizarra de sofrimento para a jovem senhora, que captava todas essas intenções não declaradas, dolorosamente ocultando suas percepções.

Ainda que se reconhecesse inserida num cenário de pesadelo afetivo, Beatriz exalava sorrisos e gentilezas para com todos(as). Mesuras para com a sogra, a quem supunha uma mulher amargurada (e realmente era, razão por que mamãe a perdoava por não lhe apoiar o enlace com o filho); gentilezas com o sogro, sobre quem prefiro não tecer comentários; falas carinhosas com a funcionária doméstica da casa, que era motivo de galhofas ou desprezo por parte dos(as) demais; defesa das cunhadas adolescentes, que eram amiúde espezinhadas pelo próprio Túlio.

Em determinada noite, perto do Natal, sentada à mesa da sala de estar acoplada à cozinha, onde a família costumava fazer as refeições, Beatriz ficou num pingue-pongue de girar a cabeça de um lado para outro, voltando-se ora para Túlio, ora para Tereza, que riam e conversavam animadamente entre si. “Eles estão felizes…” – pensava mamãe – “Então, eu também estou feliz…”

Sem perceber, ela começou a ejetar energias luminosas do chacra cardíaco em direção dos dois e, em medida menor, de todos(as) os(as) que se encontravam em torno da mesa. Beatriz, que há muito tempo não admite mais ser tão destratada, por compreender inclusive que isso prejudica carmicamente aqueles(as) que cometem o destrato, buscava exercitar a clássica vivência da renúncia. Amor incondicional, pelos(as) próprios(as) algozes encarnados(as), que a cercavam por toda parte. O que mais impressionava era que seus lances extremosos de carinho maternal se dirigiam justamente às criaturas que mais a estavam magoando: o esposo e a irmã-filha.

O tórax de mamãe, a certa altura, parecia, de nossa perspectiva (da realidade extrafísica), portar uma lâmpada viva que emanava tons de branco-amarelado solar, iluminando todo o recinto, espiritualmente sombrio. Algumas damas desencarnadas, que estavam comigo, comoveram-se com a cena. E eu me flagrei tocado de modo significativo também, mas infelizmente a contragosto, porque muito mais me esforçava por não despencar a vibração, no sentido de uma fúria contra as duas figuras quase psicopáticas que de tal maneira inqualificável escarneciam do coração nobre de minha mãe.

Naquele instante, Beatriz ficou com o olhar perdido, como a divisar o que eu não alcançava. Logo depois, Túlio avisou que se ausentaria por alguns minutos, para tomar banho, e mamãe, ato contínuo, inclinou-se suavemente na direção de Tereza, sussurrando, para que somente ela a ouvisse:

– Tereza, minha princesa, Ele está aqui!…

– Quem, Beatriz? – respondeu Tereza, com ar de quem não sentia a menor culpa por nada do que fazia, em parceria com o cunhado.

– Ele! Jesus!… Eu O estou sentindo! Não O vejo, mas O sinto. Isso é raro. Sou devota de Maria Santíssima, não propriamente d’Ele… Que conforto… que conforto!…

Tereza aguçou a atenção. Confiava na idoneidade de mamãe… pelo menos! A porta-voz de Sophia de Alexandria continuou, depois de breve pausa, como se tentasse decodificar um enigma:

– Pressinto que há, nesta casa, uma alma muito nobre, propiciando a irradiação direta de Jesus, e também intuo que essa pessoa está encarnada…

Beatriz fez outra pausa, reflexiva, mas sem atinar para a dimensão dos méritos de sua atitude tão piedosa e cristã, naquele ambiente que lhe era tão rude e hostil, e prosseguiu no diálogo com uma Tereza que sorria, gentil por fora, oca por dentro:

– Eu sei que Rivanda – a mãe de Túlio – é uma senhora sofrida, mas isso não justificaria essa forte Presença repercutida de Mais Alto… Não entendo o que está acontecendo, apesar de ser bastante treinada para interpretar esses fenômenos. Estou tão tocada, Tereza… Ele está aqui! Ele está aqui! Você O sente?

E a irmã-filha de mamãe meneou negativamente a cabeça, já desinteressada pela revelação mediúnica, que não soava nada espetacular ou curiosa para a ótica de sua índole fútil. Tereza então disparou a falar um pouco com a irmã mais velha, à falta do cunhado que a prestigiava tanto, enquanto, de minha parte, verti fios grossos de lágrimas sobre as faces.

Mamãe continuava observando, com indizível ternura, a indiferente e pérfida caçula, que passou a tagarelar com os(as) demais, mudando de assunto, sem nem se dar conta do absurdo de não comentar nada com a veneranda médium, sobre o que lhe havia sido segredado, com tanto cuidado e pudor.

Não obstante mamãe se julgar tão comum e fazer tanta questão de ressaltar isso, em público ou em privado, mesmo para quem lhe conhece de perto as características inteiramente invulgares de caráter, gostaria de declarar que eu a amo com veneração semelhante à que ela tem pela sagrada figura de Sophia de Alexandria.

Acrescentaria que, se ela não porta a santidade alcandorada de sua Mentora Espiritual, muito longe está, por sua vez, de ser comparável à média evolutiva terrena, em qualquer campo de avaliação que se escolha, seja o da inteligência, o da cultura, o da mediunidade ou, particularmente, o âmbito sublime dos sentimentos que lhe exornam a personalidade amadurecida, nos séculos de consecutivas encarnações beneméritas.

Mamãe, se puder me ouvir, acredite em minhas palavras e experimente analisar friamente os eventos de sua atual biografia. Está tudo bem, mamãe. Os indivíduos que a atacaram gratuitamente e a perseguiram injustamente, alguns francamente parecendo tresloucados, são o que são, e por muito tempo ainda permanecerão nas baixadas morais em que estagiam. Não lhe cabia salvá-los. Eles não quiseram ouvi-la. Aceite um pouco mais os seus créditos pessoais: você segue tutelada por grandes Autoridades Espirituais, por desdobrar uma missão que poucos espíritos estariam dispostos a realizar ou teriam condições para tanto, sobremaneira com o brilho e a modéstia sincera com que a executa.

Siga em paz, mamãe. Mesmo que, de ordinário, você se recuse a me ouvir, por minhas palavras tomarem, inevitavelmente, os contornos do respeito e da reverência intraduzíveis que lhe dedico, permita-me apenas dizer isso mais, mamãe:

O Céu vê tudo que se passa em torno de sua alma devotada… o Céu vê como agem os(as) que estão à sua volta, a despeito de inumeráveis serem os corações que, presentemente, também acertam e lhe reconhecem o valor, auxiliando-a em sua faina tão honrosa… o Céu vê como você se porta, de modo galhardamente meritório, inalteravelmente a serviço de todos(as), sem que quase ninguém tenha a mais pálida ideia dos esforços e sacrifícios que você despende, ano sobre ano – ignorância essa favorecida, mormente, pelo poder incrível de persuasão que você mobiliza para, por todos os meios, parecer o que você não é: comum.

Tenho que dizer ainda a você, mamãe, que se encanta de admiração e “inveja” em relação à pecadora que teve a honra de lavar os Pés Sacrossantos de Jesus, para beijá-l’Os em seguida, que você já Lhe beija as Faces, todos os dias, ao abraçar, amar e beneficiar tantos(as) com quem você sequer teria obrigação de interagir, quanto mais de servi-los(as), com generosidade e candura, infatigavelmente…

Sigo triste, sentindo-me frustrado e impotente por tão pouco poder fazer para amenizar o suplício de seu coração – que vive exausto e descompensado, longe de seus(suas) iguais (em faixa de evolução), residentes de Planos Sublimes de Consciência –, coração enormemente ignorado e desprezado, inclusive pelo que acabei de destacar: sua excepcional habilidade em ocultar quem você de fato é!

Permita-me dizer, por fim, com o atrevimento íntimo do filho eterno pelo espírito, em meio às minhas lágrimas, inconformado por vê-la sofrer tanto, que, não importando quão apaixonada você seja pela transparência, esta constitui sua grande e única mentira… e, para completar, deslavada e continuada, no correr dos anos: sua tão exagerada e repetida declaração pública de ser uma pessoa comum…

Tudo, mamãe, você pode declarar ser.. Tudo, mamãe, menos comum!…

Raphaël de Près (Espírito)
Benjamin Teixeira de Aguiar (médium)
LaGrange, Nova York, EUA
31 de maio de 2022

1. Os nomes autênticos foram substituídos por pseudônimos, para que seja preservada a privacidade dos(as) ainda reencarnados(as) partícipes do episódio descrito. Registro, ademais, que gosto de chamar minha mãe de Beatriz, por esse nome remeter à ideia de felicidade, que ela tão pouco pôde desfrutar, durante toda sua existência atual, mas que tanto trabalha por oferecer a incontáveis pessoas que recebem o socorro inapreciável de seus serviços mediúnicos.
(Nota do Autor Espiritual)