Benjamin Teixeira
pelo espírito Eugênia.


(O texto que se segue constitui o 17º capítulo do III tomo do livro “Maria Cristo”, tomo este que é um romance. Os três tomos comporão uma só brochura, sendo o primeiro: “A Tese”; e o segundo: “A Autora Espiritual”. Assim, trouxemos este capítulo por abordar um episódio de Experiência de Quase-Morte, tema interessantíssimo, para quase toda gente; e, por outro lado, para “dar água na boca”, quanto à publicação do livro “Maria Cristo”, que se dará no próximo 24 de julho, como prometido, no evento com o mesmo nome.)

Lúcia recostou-se no banco do carro, como se estivesse “entregando os pontos”. Esgotada, emocionalmente saturada. Com a cabeça pendida para trás, apoiada no respaldar da poltrona, Aristides viu-a lânguida e frágil como gostava de vê-la sempre. Em outro tempo, envolvê-la-ia, ali mesmo, em cálido abraço e demorado beijo: era o seu tesouro e lhe pertencia, pensava consigo, em seu instinto de posse. Foi a custo que se controlou. Introduzindo a chave e fazendo a ignição, olhou para a frente, tentando desviar os olhos do “objeto tentador”, e disse:

– Gostei realmente de sua fala hoje.

Lúcia levantou a cabeça pendida e rearrumou-se na cadeira, como que despertasse de um rápido momento de “deslize emocional”, assim refazendo a compostura. Aristides percebeu tudo isto e não gostou.

– Que bom, Aristides.
– Quer passar em algum lugar antes?
– Agradeço a carona até minha casa, tão-somente.
– Um suquinho rápido, naquela lanchonete de produtos naturais que você gosta…
– Para minha casa, Aristides. Obrigada pela gentileza.
– Oh, fofinha, por que tanta resistência a mim?
– Não estou resistente a você. Apenas ao retorno da relação íntima. Já lhe disse que não é possível.
Aristides ficou em silêncio, tentando concatenar os raciocínios. Precisava arregimentar argumentos persuasivos, que não a fechassem para ele, mais do que já estava.
– Você tem completa certeza disto, meu amor?
– Sou sua amiga. Não insista em se fazer sofrer.
As faces de Aristides estavam rubras. A rejeição para ele doía-lhe fundamente n’alma. Quem era ela para menoscabar seu pedido de retorno e suas manifestações de afeto? Jamais uma mulher houvera feito isto antes com ele. Tentando recuperar “fôlego”, tornou o advogado:

– Vai me abandonar, qual um barco à matroca? Sabe que sou uma nau perdida… num oceano encapelado, em meio a tempestades bravias…

– Você tem razão, em vários aspectos do que disse. Mas não em deduzir que seja eu sua salvadora. Ninguém salva ninguém, Aristides, muito menos um homem de sua idade e de seu nível de instrução. Suas imagens poéticas, por sinal, são lindas, mas não gaste sua retórica comigo. Prefiro que fale a linguagem do coração. Não sou um cliente seu, nem um adversário. Sou uma ex-namorada, que conviveu alguns anos com você, que lhe conhece a fundo. Não perca isto de perspectiva se quer manter um diálogo franco comigo.
Aristides enlouqueceu repentinamente. Lançou um soco, quase que involuntariamente, sobre o painel do veículo, rachando-o, mão imediatamente jorrando sangue, com um fragmento de plástico quebrado. Lúcia sobressaltou-se.
– Aristides, o que é isto?
Aristides estava agora em silêncio, queimava pneus, fazia manobras perigosas.
– Dr. Aristides Junqueira Freitas, o senhor não é um adolescente para agir desta forma tão infantil e caprichosa.
Urrando como uma fera ferida, bradou o advogado tresloucado:
– Estou agindo como um homicida e não como um adolescente! Como você não será minha, não será de mais ninguém! Quero acabar com minha vida, já que não sei viver sem você; mas você vai junto, porque não será de mais ninguém também!
– Aristides!!! Aristides!!! Recomponha-se! Controle-se! O que é isto?
Aristides, porém, quanto mais ouvia os reclamos enfáticos da ex-namorda, mais empolgava-se em sua “vingança do orgulho ferido”. E, em pouco tempo, de fato, numa curva mais arriscada, o carro capotou várias vezes e parou num poste em frente, sem derrubá-lo porém. Fios de alta tensão serpentearam na via pública e populares começaram a se aproximar, em polvorosa, diversos veículos estacionando, no intuito de prestar socorro alguns, de vasculhar a desgraça alheia, para se sentirem menos infelizes e entediadas com suas próprias vidas, a maior parte dos curiosos. Duas horas mais tarde, os dois estavam instalados em emergência de hospital próximo, com familiares sendo comunicados do sinistro, disparando em direção à casa de saúde. Lúcia estava relativamente bem, com escoriações e alguma perda de sangue, num ferimento simples no rosto. O sistema de cinto de segurança acoplado ao “air bag” fora eficiente na defesa de sua incolumidade física. Já Aristides oscilava entre a vida e a morte, com forte hemorragia interna, que os médicos plantonistas da instituição tentavam debelar com urgente procedimento cirúrgico. No alto da sala de operações, um Aristides fora do corpo, inteiramente lúcido, mas pasmo de horror, acompanhava as manobras médicas, para salvar-lhe a vida física. Contemplava seu corpo inerte e descorado sobre a mesa de cirurgia e custava a acreditar no que via. Então… era tudo verdade o que Lúcia falava sobre o Espiritismo e a vida após a morte…
– Dr., nós o estamos perdendo… – clamou, com voz nervosa, uma das assistentes da equipe médica, dirigindo-se ao chefe do grupo, alarmada com os dados expressos, nos painéis dos leitores eletrônicos de sinais vitais.
Não podia ser, pensou consigo Aristides. Não estava com intenção verdadeira de causar um acidente, muito menos a própria morte. Só queria dar um susto em Lúcia e, com isto, dissuadi-la de sua intenção de não mais querê-lo como homem de sua vida. Era um excelente motorista, tinha total domínio do volante e da máquina, pensou, em seu padrão habitual de orgulho masculino, que não admite limitações nem erros em si. Aquilo não era para ter acontecido. A esta altura, todavia, foi tomado por uma estranhíssima sensação de vertigem, e percebeu que foi sugado para cima, por uma espécie de túnel estreito, mas que “não apertava”, como se estivesse em queda livre, só que caindo para cima, em vez de para baixo. No fim do túnel, uma Luz de branco ligeiramente amarelado de uma iridescência solar, fascinava-o e tragava-o, celeremente. Em poucos instantes estava mergulhado n’Ela… Aristides sentiu-se chorar como um bebê. Amor… Amor… Amor… infinito amor… Aquela Luz era viva… Era uma Mãe… Uma Mãe Gigante todo-amor, sem-forma, sem-rosto. O amor somado de todas as mães de todos os tempos… Um sentimento de plenitude e total felicidade tomou Aristides como nunca poderia um dia traduzir em palavras. Era, sem dúvida alguma, aquilo, mais do que tudo que um dia supusera ser possível como paraíso. Em meio à alegria e beatitude indescritíveis daquele momento, uma voz maviosa e indefinível de Mãe, perguntou-lhe:

– Aristides, o que você fez de sua vida?

Ato contínuo, uma sucessão de imagens saltou sobre seus olhos e, quadro a quadro, desde as lembranças mais remotas da infância tenra, até os últimos instantes, antes do acidente fatídico, toda sua existência “rodou” à sua frente, qual uma fabulosa projeção de cinema tridimensional, com detalhes inenarráveis para o plano físico, como acompanhar os pensamentos e sentimentos das pessoas envolvidas nas cenas e as conseqüências de seus atos, na vida de cada uma delas. Aristides viu-se egoísta, mesquinho, perverso até, em muitas ocasiões. E a Luz continuava transbordando amor oceânico, inalterável, incondicional, ao seu lado, em sua direção, e o advogado constrangia-se infinitamente por se ver tão abjeto e tão torpe, ante aquele Ser Divino.

– Você estava apenas aprendendo, meu filho – disse, então, a Luz, no pico de seu maior embaraço.

Logo em seguida apareceram os poucos momentos em que Aristides houvera sido generoso naquela rápida existência de quase 40 anos. A batida nas costas de um amigo triste, para reconfortá-lo, sem qualquer intenção de retribuição. Um telefonema carinhoso para a mãezinha devotada. Um lanche que pagou para criança carente nas ruas da metrópole. Gestos simples, de bondade verdadeira, aparentemente desprovidos de importância e significado maiores. E, por fim, como um sol em meio a todas as expressões de amor, surgia a figura de Lúcia, que, de fato, amava, do fundo do seu coração.

– Só o amor salva, edifica e plenifica – declarou a voz de amor transbordante.

Novas cenas corriam velozes e Aristides viu-se estudando obras de Direito e, por fim, lendo os poucos tomos de assunto espiritual e esotérico, que Lúcia insistira em que lesse, sentindo, agora, diante daquele Ser Espetacular, que tal literatura era a mais importante que existia.

– O conhecimento, depois do amor, é a base da redenção humana – disse, por fim, a Voz.

Aristides estava encantado com tudo aquilo. Queria estar ali para sempre. O que ele sempre buscara e até acreditara ter descoberto em Lúcia, estava ali, com ele, naquele momento. Aquela Luz Todo-Amor, a Grande-Mãe. Ficar ali para sempre… para sempre… Quando pensava assim, viu-se lançado numa sala pequena e clara, com uma mesinha simples e duas cadeiras. Sentou-se numa delas, sem saber dizer por quê. Foi quando, inesperadamente, apareceu-lhe a figura venerável de sua avó paterna, alma boa e generosa, que vivera para a felicidade dos seus, sem pensar praticamente em si, visivelmente remoçada e cheia de vida, a esposa do avô que o obsediava no plano físico.

– Olá, meu filho! – exclamou, cheia de bonomia.
– Vovó! A senhora já…
– Sim, eu sei, já parti do mundo onde você está. E vim até aqui para lhe dizer que você não pode vir para cá ainda, meu caro Aristides.
– Mas vovó, é tão bom estar aqui! Prefiro ficar aqui!
– Sim, eu sei. Mas nem tudo, do lado de cá, é maravilhoso, como você acabou de pressentir. Você teve um vislumbre do céu, como todos nós temos em certos pontos de nosso histórico evolutivo; um lampejo do céu onde um dia mereceremos estar mergulhados, definitivamente, quando de todo nos houvermos despojado de nossas limitações humanas. Por ora, há muito trabalho a ser feito, tanto na sua, como na nossa dimensão de vida. E se você viesse para cá, nesta altura de sua existência, com enorme quantidade de tarefas inacabadas, criaria enormes perturbações para seu espírito e mesmo atrapalharia e retardaria em muito esta tal imersão no amor oceânico de Deus e Seus Anjos, como acabou de sentir. Assim, deve voltar para o seu corpo físico, dádiva preciosa que nos foi concedida pelo Criador para nosso progresso espiritual, e trabalhar feliz pela própria melhoria, servindo e amando, aprendendo e realizando para a vida eterna. Lúcia, a sua tão querida amiga, ajudá-lo-á muito neste mister. Vá, meu filho, e não se esqueça: a vida física é muito rápida, tão quão preciosíssimas são as oportunidades de realização e de felicidade que ela nos oferece.

Neste ponto da conversa franca e profunda, Aristides sentiu-se voltar para a sala de cirurgia, imergindo na massa de dor e mal-estar em que seu corpo se convertera, perdendo os sentidos, logo em seguida. Passaria várias horas desacordado, e, ao despertar, nunca mais seria o mesmo homem. Aristides tocara, ainda que de leve, a aduana do paraíso… e sua forma de ver e sentir o mundo nunca mais seria a mesma.

(Texto recebido em 8 de junho de 2005.)