Benjamin Teixeira
pelo espírito
Margarette.


Entrei em casa, pé ante pé, não saberia dizer por quê. Alguma coisa me segredava, no peito, que encontraria algo de muito desagradável em minha casa… E qual não foi minha surpresa ao flagrar meu ilustríssimo esposo, no próprio tálamo conjugal que nos pertencia, refocilando-se nos prazeres do sexo, com antiga comadre, amiga de infância. O desespero, com a infâmia perpetrada no próprio ninho doméstico, foi tamanho, que não tive tempo de raciocinar, e saí correndo, via pública afora, lançando-me sob as rodas de um conversível, que vinha em disparada, em importante avenida de escoamento, na minha cidade natal.

Anos se passaram, de dor inaquilatável em regiões sombrias da espiritualidade inferior, fui resgatada para uma estância de tratamento e refazimento de forças, até que logrei autorização de rever o lar abandonado – que me tanto causara vertigens de agonia –, apesar do veemente protesto dos orientadores mais abalizados, que não me julgavam completamente apta à experiência difícil do confronto com a verdade. Mas minha antiga teimosia e insubmissão foram mais fortes, e acabei por obter a chancela para sair, mas sob expressa condição de me comprometer a voltar à instituição de socorro que me albergava, visse o que visse.

Vi… e não gostei. Em verdade, quase me deixei tragar para o mesmo vórtice de desespero que me levara ao gesto supremo do autocídio. Ele se casara, em segundas núpcias, com ela mesma(!), a traidora… e pareciam felizes! Eram senhores de meia-idade – diferentemente dos jovens da casa de vinte anos que éramos os três, à época do evento fatídico –, mas com excelente aspecto, parecendo bem cuidados e felizes, horror dos horrores para minha perspectiva naquele momento. E, estranhamente, quando me aproximei, provavelmente motivados pela minha vibração fortíssima de choque, começaram a conversar sobre mim:

– Ainda bem, querida Isaura, que o destino, com sua mão de ferro, levou, para longe de mim, aquela desajustada da Margarette. Como poderia ser feliz, ao lado de uma mulher tão desatinada, a ponto de tirar a própria vida, sem dar espaço a qualquer explicação? E você… pobrezinha, meu amor, ainda se permitia, por aqueles dias, entregar-se a torvelinhos de culpa… Com a morte dela, graças a Deus, vencemos os últimos percalços para nossa felicidade, que se completou!

– Pois é, meu tão amado Pedro… Como muito bem diz o ditado popular: “Deus escrever certo por linhas tortas”, não é verdade? Quem diria que algo tão traumático e chocante, num primeiro momento, ser-nos-ia propiciador de tanta ventura a dois… Minha culpa se esvaiu totalmente, quando vi o destrambelho emocional daquela maluca! Senti que higienizei sua vida, livrando-o daquela possessiva histérica.

Estava lívida, ouvindo a fala leviana da amiga de infância que me traíra a confiança da pior forma, com meu marido, no meu próprio leito conjugal. Vacilei, apoiando-me numa parede ao lado, sentindo iminência de sofrer um delíquio, enquanto punha a mão espalmada sobre a testa, num gesto automático que parecia suplicar, angustiadamente: “Deus, não me permita enlouquecer!…”

Afastei-me do ambiente para não prosseguir ouvindo o diálogo, que começou a tomar rumos progressivamente mais chulos e desrespeitosos com minha “ausência”, a fim de que pudesse exercer o direito da defesa. Trôpega, trêmula e ofegante, chegando em sala distanciada uns 15 metros d’onde os mexeriqueiros se confiavam à volúpia da difamação, consegui, com ingente esforço moral, proferir uma prece de pedido de socorro urgente, e, no espaço de poucos segundos – algo como meio minuto –, dois assistentes de nosso plano se aproximaram, solícitos, e me reconduziram à nossa cidade de restauração de forças e educação da alma para a vida eterna…

Voltei para casa, refletindo, amargamente, no meu ato tresloucado de suicídio, e o que mais me doía era, além de concordar com parte do parlatório ultrajante a meu respeito, pensar que uma das motivações mesquinhas do homicídio de mim mesma era destruir a vida dos dois, por meio de uma culpa insanável, que lhes tisnasse as consciências para sempre… Eu me afundara ao mais fundo fosso da desgraça, e eles, de reversa maneira, estavam muito bem… ao modo deles, mas realmente bem.

Não tenho condições de prosseguir comentando aqui a tragédia desta minha última reencarnação. Meus orientadores espirituais pedem que suspenda neste ponto meu relato, para que não me desestabilize psicoenergeticamente. Despeço-me, porém, dos que me honraram com a paciência da leitura de minha deplorável vivência de vergonha, culpa e crime, dizendo: que ninguém se coloque como vítima em nenhuma situação, com o desejo inconsciente ou mesmo consciente de punir outrem, porque, ainda que isso aconteça, a desgraça é sempre maior para aquele que ousa se posicionar nesta sinistra e desprezível postura psicológica e atitude perversa ante a vida e o próximo.

(Texto recebido em 1º de agosto de 2007. Revisão de Delano Mothé.)