Benjamin Teixeira
pelo espírito
Eugênia.

Certa vez, um homem estava entristecido por não dar um pouco mais de conforto a seus filhos. Em meio a privações, eles cresceram, e assim se constituíram, na dura fímbria do trabalho. Não era fácil. Todos os dias, os pequerruchos acordavam cedo, antes mesmo de o sol raiar, comiam frugalmente e partiam para muitas horas de serviço estafante, na carpintaria de que a família era proprietária, cujo ofício aprenderam, por sua vez, de seu próprio pai. Após o almoço também leve, as crianças, mal terminada a refeição, iam correndo para a escola, aprender as primeiras letras. Eram três meninos, traquinas, como todos de sua idade, mas, ao chegarem do colégio, perto do crepúsculo, quando poderiam, então, ter algum tempo para os folguedos naturais da infância, já era tão tarde, que logo estariam sendo chamados pela mãe devotada, a fim de se banharem e participarem da ceia, que encerrava o dia. Deitavam-se de tal modo esgotados, que mal recostavam as cabecinhas nos travesseiros e já estavam ressonando profundo.

O homem contemplava a cena de exaustão completa de seus filhos tão jovens e lembrava-se dos dois petizes de seu vizinho rico – um pequeno industrial próspero –, de idade similar à dos seus. Via-os saírem em um automóvel de luxo, logo cedo, para um colégio refinado, no centro da cidade. Após o almoço, percebia um silêncio tumular no casarão, que denunciava o respeito à sesta dos garotos. E, sempre às duas ou três horas da tarde, podia ouvir – e seus filhos também –, já que a carpintaria ficava num anexo da própria residência, a balbúrdia alegre dos meninos, que brincavam todo o resto do dia, até o sol se pôr. Ele sentia injusta aquela realidade distante e, ironicamente, tão próxima a ele e a seus filhos. Inúmeras vezes, viu-se tentado a dispensar os meninos do serviço e deixá-los usufruírem, como os seus pares ricos do lado, plenamente sua infância. Mas detinha-se, no último instante: não podia prescindir da colaboração eficiente dos garotos, ou o pão na mesa e os livros da escola faltariam para eles mesmos. Suspirava, então, fundo, nesses momentos, olhava para o Alto e entregava a situação a Deus, que deveria ter um plano para os seus queridos rebentos.

Veio a grande depressão dos anos 30. Os meninos, hoje convertidos em rapazes, estavam cheios de sonhos e determinação para viver e realizar. Só que uma grande surpresa houvera ocorrido: a fábrica dos vizinhos ricos, antes próspera, veio à falência, em meio às intensas reviravoltas por que passava a economia global, por aqueles dias. O desemprego campeava em larga medida, até para pessoas instruídas. Acostumados, porém, à vida mansa, os filhos da abastança não só tinham sido alunos medíocres durante todo o histórico escolar, como ainda não apresentavam qualquer disposição para o trabalho árduo exigido de todas as criaturas que pretendam progredir, sobremaneira em épocas de crise.

Anos difíceis aqueles… e, curiosamente, os rapazes – filhos do carpinteiro e os do industrial –, outrora separados por um abismo sócio-econômico, estavam agora nivelados, ladeando-se na espera e na luta por um porvir melhor. Todavia, enquanto os jovens carpinteiros descobriam serviço e criavam alternativas inteligentes para o momento de “vacas magras”, os “bem-nascidos” rebelavam-se contra o destino, sendo forçados a buscar empregos “subalternos” – para suas expectativas de futuro –, regateando-os, amiúde, ou logo perdendo-os, por indisciplina.

E o tempo, implacável, corria célere. A depressão econômica da década de 30 do século XX passou, veio a 2ª Grande Guerra, a que um dos três rapazes pobres serviu, bem como um dos dois filhos da fortuna. Ambos voltaram, felizmente, embora cheios de péssimas, amargas lembranças. O primeiro, apesar de tristonho a princípio, converteu em trabalho toda a energia negativa acumulada nos anos de barbárie da guerra. O segundo, por seu turno, sucumbindo ao padrão neurótico, suscetível, desacostumado às asperezas da existência, afundou na “psicose de guerra” e acabou internado numa clínica mental, por mais de dois anos, de lá saindo como um “caco” humano, pelo resto de seus dias no corpo físico, mergulhando-se no alcoolismo, vindo a morrer de cirrose hepática apenas três lustros após o término da guerra. Seu irmão mais jovem, remanescente à tragédia familiar, enterrou a mãe, carcomida por uma violenta metástase – que lhe traía a profunda revolta pela vida –, e também o pai, vitimado de um ataque cardíaco fulminante, pouco depois da morte de seu irmão, todos imersos em miséria e melancolia. Sobreviveu, ainda por mais alguns poucos anos, apenas para assistir ao sucesso estratosférico de seus antigos vizinhos pobres, os filhos do carpinteiro – a quem costumava olhar com desdém –, já agora donos de uma gigantesca indústria de móveis. Azucrinado de tristeza e vergonha, infeliz na vida afetiva, que ruiu, após o segundo casamento fracassado, abandonado pelos filhos e pelas duas ex-esposas – inapto que também era para processar os desafios e conflitos dos relacionamentos interpessoais –, sozinho e derrotado, termina por dar cabo da própria existência, em gesto tétrico de autocídio, por meio de arma de fogo depositada na própria boca…

O carpinteiro, já octogenário, soube quando o último elemento daquela família “tão feliz” havia passado para o Outro Lado. Rememorou-se, saudoso, do tempo em que invejava a condição dos filhos do vizinho, que não precisavam trabalhar tanto quanto os seus. E, olhos marejados de lágrimas de gratidão a Deus, orou baixinho, louvando os Seus sábios desígnios, que – intuíra na ocasião e tinha no presente a comprovação – sempre laboraram pela felicidade dos seus. E congratulava-se por haver resistido à tentação, contínua, de afrouxar na criação zelosa e disciplinada que dera a seus filhos. Hoje, realmente, percebia quão acertada fora.

A riqueza nunca é negativa em si. Nem a pobreza, por ela mesma, dignifica ninguém. Todavia, o hábito do trabalho, da disciplina e do estudo, a compreensão de que o viver constitui uma colcha de investimento constante de esforço e determinação, são imprescindíveis para o êxito em qualquer departamento da existência. E, não raro, os filhos do fausto tendem a ser poupados, demasiadamente, do contato com o mundo real, que lhes exige garra e coragem para o trabalho e para a superação de frustrações e decepções. Chegam, assim, à vida, imersos num sonho de ilusões que rapidamente se converte em um dantesco pesadelo da realidade.


(Texto recebido em 20 de abril 2000. Revisão atual de Delano Mothé.)

Efeméride:

Hoje celebramos o 139º aniversário de desencarne de nosso ínclito codificador espírita, Allan Kardec, falecido em 31 de março de 1869, em Paris, França.

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