por Benjamin Teixeira.

A maldade humana tem formas sutis de se manifestar, nem por isso menos destrutivas, e, em algumas de suas expressões, podendo ser terrivelmente nocivas, pois que mascaradas de boas intenções, como o mexerico, que pode, em vez de parecer: “meu desejo perverso de destruir alguém com a língua”, ser travestido de: “informação que ofereço generosamente a você” ou até de “desabafo amigo, porque confio muito em você.”

Por outro lado, você já ouviu falar da “brincadeira do telefone”? Talvez até tenha dela participado, na infância ou na adolescência. Cria-se um círculo e uma pessoa fala alguma coisa aos ouvidos de alguém, aos sussurros, para que os outros não possam ouvir, que, por sua vez, passa adiante para uma outra pessoa e, assim, numa série de dez, quinze, vinte pessoas, que estejam na roda. Ao final, o último da linha diz o que entendeu ter ouvido e confrontando-se isso com a mensagem original, tão distorcida se mostra, que a gargalhada geral é irresistível. Nada, para mim, retrata melhor o fenômeno da fofoca que essa curiosa metáfora do falatório. Obviamente que existe a calúnia perversa, de alguém inventando deliberada e criminosamente uma mentira a respeito de pessoa digna, apenas pelo prazer de atassalhar-lhe a reputação, ou com intenção de vingança, sabe lá Deus por que motivos pérfidos e inconfessáveis. Mas, muito francamente, apesar de ser pessoa pública e já ter sofrido, como todo mundo que esteja mais exposto – mexericos delirantes, acredito que a calúnia pura seja rara.

A tendência-padrão, ao ouvir um relato é supor que o interlocutor, até que se prove em contrário, está falando a verdade. Ouvem-se as pessoas falarem como se fossem jornalistas dando depoimentos quase científicos sobre os fatos que teriam testemunhado. É exatamente aí onde mora o perigo. Histórias contadas não são ocorrências rigorosamente reproduzidas, mas sim versões apresentadas pelas neuroses, paixões, histórico de vida, nível de entendimento da realidade de quem fala e de todos que falaram antes de quem fala (caso a história já tenha passado por outras “bocas santas”). Inevitavelmente, as idiossincrasias, taras ocultas, paradigmas e crenças (conscientes ou inconscientes), a ignorância e a loucura de alguém filtram a percepção da realidade e, principalmente a avaliação que se faça da mesma.

Vou contar uma “história” que ouvi recentemente, apenas para dar uma idéia mais pragmática do que estou falando. Os exemplos sempre facilitam enormemente a compreensão de conceitos complexos. Uma “boa moça”, ao ouvir-me falar de uma certa outra pessoa, amiga minha, disse-me:

– Ah, Benjamin, você me desculpe ser sua amiga, mas Fulana…

A essa altura, no passado, geralmente estaria “perdendo a cabeça” e dizendo impropérios, antes que a pessoa ousasse dizer o que quer que fosse sobre a pessoa amiga, já me antecipando, com ditos ácidos, quando não sarcásticos, em sua defesa. Mas, desta vez, mais experiente, resolvi ouvir um pouco mais, e estudar a dimensão da loucura humana, para depois concluir com um:

– Que pena que tenha passado por isso! Mas me recuso a admitir que essa pessoa tenha feito isso – para minha estupefacta e desconsolada interlocutora. Essa é minha resposta pessoal contra os fofoqueiros de plantão, que formam um medonha rede de informações vis, quase sempre, como verão, prenhes de pequenas e grandes mentiras.

É isso mesmo: esse é um dos traços, a meu ver, mais mesquinhos e malévolos da fofoca. Quem conta uma “história” (leia-se “versão pessoal”, como disse acima) fica indignado se quem ouve não participa de sua opinião, imediatamente. E parece que o prazer máximo do fofoqueiro é ouvir um: “Não é possível que Beltrano tenha feito isso!” – com um profundo ar de desgosto, já revelando a decepção. Bem… os fofoqueiros passam maus bocados comigo – não lhes dou esse “gostinho”, jamais!

Bem, voltando à história sobre minha amiga:

– Essa moça tomou-me um namorado e, num lugar público, desfilando com ele para eu ver, como supôs que eu não estava dando bola para eles, simulou que estava indo ao banheiro, pisou no meu pé de propósito, esfregou seu pé sobre o meu, para se certificar que tinha machucado e ainda olhou para mim, sorrindo de prazer.

Modelos caricaturais, como uma história entre o infantil e o ridículo como esta, amiúde servem melhor de exemplo para um entendimento de um princípio do que situações mais frias, dúbias ou complexas. Diante desta “história” prosaica, boba e mesquinha, muita gente que conhecesse a tal Fulana que foi caluniada simplesmente diria: esta pessoa que fala está louca ou é uma grande mentirosa. Mas quem conhecesse a tal Sicrana que fala, sabendo-lhe uma pessoa sincera e sem motivos para inventar “histórias”, poderia ficar confuso sobre o que ouvia. Mas quem disse que precisamos supor que quem fala mente? Quem fala, lembremos o paradigma da fofoca, apresenta sua versão de algum acontecimento, e as versões estão prenhes de pressupostos de verdade ou deduções e conclusões apriorísticas, cheias de má-vontade, amiúde, além de todas as projeções inconscientes que se faz da biografia e da natureza pessoais sobre o objeto ou pessoa observados. Isso, porém, nem sempre é tão óbvio, dado o verniz social que costuma encobrir os verdadeiros pensamentos e sentimentos que se ocultam sob o vernáculo polido. Se ouvíssemos o que a pessoa está sentindo, ao falar com um Português educado e diplomático, facilmente levantaríamos suspeitas sobre a veracidade do que ouvimos. E as intenções reais e o turbilhão de emoções mesquinhas que as pessoas costumam ter, quando magoadas, são, quase sempre, mascaradas com ditos elegantes, como o totalmente hipócrita, como o ouvi neste caso: “Desculpe-me, Benjamin, que Fulana seja sua amiga”. Hipócrita, “de cara” posso afirmar, porque se a pessoa estivesse de fato sentida, a ponto de pedir desculpas antecipadamente, não estaria tomando a iniciativa de falar mal de uma pessoa que sabe ser minha amiga. Ela só pretende, com isso, muito grosseira e ardilosamente, cooptar minha simpatia para destruir a imagem que faço da pessoa querida, para atender a seus interesses mesquinhos. Como sou uma pessoa há já vinte anos ouvindo desabafos e relatos pessoais, em aconselhamento profissional, meus ouvidos, obviamente, são bem mais perspicazes que os interlocutores costumam supor, e, lamentável ou felizmente, quase sempre estou ouvindo mais a respeito de quem fala do que sobre a pessoa que está sendo “falada”. Tentando, superficial mas, dentro do possível, didaticamente, exprimir o que “lia”, durante a “fofoca”, principalmente tudo que diz respeito às deduções que fazia sobre a história de vida da “fofoqueira” e sobre sua identidade exageradamente associada ao universo do poder de sedução feminil e suas carências e complexos naturalmente velados, vou agora dizer como eu ouvi a história, à medida que minha interlocutora, muito segura do que dizia, certa de que estava me seduzinho e persuadindo com sua fala, ia-me narrando o “ocorrido”, percebia-lhe tremores sutis nos músculos faciais, um piscar nervoso dos olhos e a fuga deliberada a me fitar frontalmente, na tentativa de dissimular a caratonha de ódio e maldade que estava sob a película de seu semblante “educado”, bem como o desejo de gritar e esbravejar, por detrás da voz trêmula, mantida sob baixo e agradável volume:

– Pouco me importa o que você ache daquela pilantra, pelo que já demonstro total desrespeito por seus sentimentos e até me divirto agora em feri-los sem escrúpulos. Fulana namorou um antigo namorado meu, após o término do nosso relacionamento – e, como não posso admitir que o tenha perdido para ela, é claro que acredito que ela o roubou de mim, e por isso já me antecipo em declarar essa minha impressão íntima como se fosse um fato. Ela passou, feliz, ao lado dele, e isso, é claro, só para “passar na minha cara” e eu ficar arrasada”. A certa altura, no local público em que nos vimos, ela foi ao banheiro. Mas é claro que não foi um desejo real de ir ao banheiro… eu não sou boba! É que ela não achou bastante esnobá-lo para mim, e como eu “não dei bola”, veio e pisou-me o pé de propósito e ainda fez questão de se certificar de que me machucou, por fim dando a prova máxima da maldade e da intenção criminosa olhando para mim, sorrindo.

Considerando que a cena, como ela descreveu, aconteceu de fato, incluindo o sorrisinho “malicioso” ao fim – que muitos dos meus inteligentes leitores sabem que pode não ser verossímil – vejam o que de fato interpretei do que ocorreu, como mais um nível de “leitura” do que me ia sendo dito, embutido no primeiro, já agora a respeito da minha amiga, em coerência com o que conheço dela, uma mulher digna e madura:

“Fulana chegou com seu namorado a um local público e encontra, por lá, a ex-namorada de seu novo parceiro, e fica profundamente constrangida, principalmente por já ter notado que a moça não a vê com “bons olhos”. Resolve, então, se concentrar no seu momento de felicidade, e, assim, diverte-se à vontade no ambiente, após decidir-se não se incomodar com a maldade alheia. A certa altura, precisa ir ao banheiro, e, Céus!, daquelas situações bem embaraçosas, ao passar por um caminho de volta descobre, ao esbarrar no pé de alguém, que esse alguém é a tal moça complicada que está no ambiente e, de tão nervosa, tropeça, ainda com seu pé sobre o pé da outra e retira-o rápido, olhando-a com um sorriso sem graça, no intuito de pedir desculpas, mas, ao se deparar com a expressão de ódio surdo da moça “pisada”, nem sequer consegue manifestar seu pedido de desculpas, e parte de volta para a sua mesa, sem dizer palavra.”

Não precisei pedir essa versão de minha amiga, porque nem sequer quero que ela saiba que algo tão mesquinho e torpe foi dito a seu respeito. Contar-lho também seria machucá-la e não vou dar prosseguimento às intenções destrutivas da “faladora”. E, por outro lado, ficar trazendo e levando conversas é simplesmente uma grande perda de tempo, com tanto mais importante a se fazer. Apenas fiz uma dedução bem lógica, por conhecer quem foi “falada”, uma pessoa de sucesso, bonita, realizada e sinceramente religiosa e espiritual. E por ter uma boa noção sobre quem falou: uma pessoa cheia de frustrações, futilidade, inveja e neuroses mal-resolvidas, de quem, inclusive, já havia suspeitado ter sido molestada na infância.

Hoje, resolvi apresentar esta pequena e despretensiosa lição sobre ouvir pessoas, por fazer parte diuturna de meu trabalho, o primeiro passo para que se possa aconselhá-las adequadamente. Porque, diga-me, amigo, você já recebeu alguma aula de: “Como ouvir as pessoas com isenção e filtrar-lhe as verdades ocultas, veladas na opinião pessoal” ? Pois é! Nem tampouco sobre diversos importantes assuntos que diretamente nos tangem no dia a dia, tais como: “A ciência de processar crises existenciais e seguir fortalecido e amadurecido”; “Como amar e ser amado sem neuroses”: “Como ser feliz”; “Como ser espiritual e moderno ao mesmo tempo”. Em vez disso, dão-nos aulas sobre matemática na escola e economia na faculdade, como se fosse possível resolvermos dilemas existenciais com o conhecimento de trigonometria, ou digerir um confronto conjugal ou um torvelinho relacional no trabalho, com aquelas complexas tabelas para cálculo inflacionário. Espero, com essa iniciativa, que lhe tenha sido útil, porque é sempre doloroso quando amamos ou admiramos alguém, e ouvimos algo feio a seu respeito, e não sabemos como rebater.

Então, fica esse alerta: cuidado com quem fala mal: pode não estar mentindo, mas pode, muito bem, estar movido por péssimas intenções, e, principalmente, estar transmitindo dados completamente distorcidos, pela sua, bem como pela mesquinharia de outras pessoas, embora possa ostentar um sorriso sereno no rosto… mas sempre com um inconfundível quão sinistro brilho no olhar…

(Texto redigido em 9 de agosto de 2004.)