(Episódios com o professor Gerard – 3)

O professor Gerard chegara esgotado de sua última exposição pública. Não restava dúvida de que a Espiritualidade Maior somente lhe pedira para tocar na grave temática da noite, por ele ser o único médium ostensivo, com trabalho expressivo diante da multidão, disposto a tratar do assunto da forma como foi abordado.

Um “iconoclasta do bem” – poderíamos dizer. Combatia em prol das minorias, em diversas frentes de militância, simultânea e incansavelmente, do púlpito de uma atividade de caráter espiritual! Não criara uma igreja gay, entrementes – não precisaria desse expediente para adquirir celebridade. Isso era notório, porque, quando ele declarou sua orientação sexual, diante de um auditório apinhado, seu programa de TV já estava sendo transmitido por uma segunda rede nacional de televisão. E, à época, ele já havia se assumido homossexual, entre seus(suas) íntimos(as), há mais de dez anos!

Quantos(as) de seus(suas) contemporâneos(as) o fazem hoje, mesmo em outras áreas de atuação? O fato de ele compor a comunidade LGBT, por si só, nunca fora motivo que justificasse – os ambientes religiosos estão coalhados de homossexuais enrustidos(as). Ele, a seu turno, casara-se com um homem mais novo, em cerimônia pública, na primeira década do século!

E, seguindo as melhores tendências da atualidade, Gerard lutava não só pela causa gay, mas igualmente pela de todos(as) os(as) LGBTQIs, a fim de somar forças ao movimento de libertação desses oprimidos e atacadíssimos grupos, condenados como aberrações pelas religiões formalmente organizadas. Negros(as) também estavam em sua agenda de defesas ardorosas. A sua grande paixão, no entanto, desde o início das atividades públicas, era a causa feminista. Empoderar o gênero feminino da espécie era-lhe uma questão de honra. Feria-lhe pessoalmente os sentimentos qualquer expressão de depreciação das mulheres, conquanto muito claramente se considerasse cisgênero, ou seja, identificado com seu sexo masculino – batalhava, portanto, pelos direitos do que seria “o outro lado”.

A atitude de advogar apenas em causa própria, ele ferrenhamente rechaçava, nestes termos aproximados, repetidas vezes: “Ou todas as minorias se unem e os interesses de todos(as) são garantidos, concomitantemente, ou a esmagadora maioria dos seres humanos estará inteiramente desprotegida, exposta ao horror do preconceito”. O que se vê, de sempre, são homossexuais brigando pela causa gay, mulheres pelejando pelo ideal feminista, negros(as) levantando a bandeira da consciência negra.

Até nisso o emérito professor era uma extraordinária exceção de síntese, força e coragem. Em suas preleções, além de transitar por diversas disciplinas do conhecimento humano, com uma verve transdisciplinar impressionante, ele defendia, ao mesmo tempo e com persistência hercúlea, todas as causas, especialmente as mais difíceis!

Normalmente, concluía o raciocínio sobre o combate a preconceitos, asseverando, em Nome dos Gênios Celestes que o inspiravam: “E quem é que não pertenceria a algum grupo discriminado? Quem não padeceria algum tipo de ataque preconceituoso, em quaisquer culturas e sociedades?” Em inúmeras ocasiões, sob o sopro de sua egrégia Mentora Espiritual Sophia, assim denominou essa praga diabólica que se alastra por todo o planeta: “Preconceito – o grande e verdadeiro flagelo antiCristo!”

E essa assertiva não seria inconteste? Por detrás de razões econômicas e políticas rasteiras e inconfessáveis, o que vem compelindo a humanidade a sofrer suas maiores atrocidades, desde a perseguição a inocentes (gênios, santos e mártires dos dois gêneros) até os genocídios horrendamente perpetrados, século após século? A resposta é inequívoca: o preconceito contra a diferença, seja de etnia ou de religião, de nacionalidade ou de idioma, de região geográfica ou de nível de desenvolvimento socioeconômico etc.

Gerard recolhera-se em prece, no escuro de seu quarto, em plena madrugada, completamente insone. Que fazer, entretanto? – cogitava de si para consigo. Não poderia ser político ao propugnar aqueles princípios fundamentais de respeito à dignidade humana. Não poderia agradar quem quer que fosse, nem mesmo seus(suas) amigos(as) mais próximos(as). Sua função, como orientador espiritual, exigia-lhe máxima transparência na explanação das matérias em foco, ainda que se esforçando por ser didático e psicológico. Pactuar com a conveniência das circunstâncias, do moralismo e da cultura dominantes, configurar-lhe-ia, indubitavelmente, uma traição à própria consciência e à confiança que lhe houvera sido delegada pela Divina Providência…

Pode parecer óbvio, mas esse modo criterioso de proceder não é muito comum nos círculos religiosos e espirituais. Muito pelo contrário. A norma sempre fora e continua sendo a das palavras brandas, das meias verdades, das mentiras elegantes. E, nestes tempos de tecnologia de comunicação de massa, campeiam, diante das câmeras e microfones, os jogos bem elaborados de aparência de santidade, de virtude ou de valor moral, visando cativar as plateias e expandir a quantidade de fiéis mantenedores(as) de impérios de poder econômico e político, quando não são levados a cabo tão só para alimentar a vã e cínica vaidade de narcisistas megalomaníacos(as).

Meios religiosos costumam ser exatamente o que jamais deveriam ser: políticos. E se até profissionais da política podem exercitar a sinceridade, em certa medida, como condescender com o religiosismo das inverdades interessantes à manutenção das aparências e convenções sociais? Como essa poderia ser a prática reinante nos redutos de busca de devoção à Divindade? O Mestre dos(as) mestres(as) deixou o exemplo máximo de como essa postura nada tem a ver com a verdadeira Espiritualidade: Ele Mesmo revirou as bancas do famigerado Templo de Salomão, que, não por acaso, foi arrasado até o chão, na geração seguinte ao martírio do Cristo Verbo, restando apenas o igualmente famoso “muro das lamentações”.

E, como resultado do padrão de dissimulações crassas no seio das religiões, os(as) hipócritas mais inteligentes, muitos(as) deles(as) manipuladores(as) óbvios(as), próximos(as) à psicopatia ou francamente sociopatas, dominam quase a totalidade do cenário, nos galarins da celebridade e nas cúpulas da maior parte das grandes organizações religiosas, no mundo inteiro. Tradições orientais ditas “não religiosas”, por sua vez, amiúde dispensam o Ser Supremo para cultuarem seus(suas) gurus autodeclarados(as) deidades vivas.

Muita gente crédula e decente, mas sem perspicácia para “separar o joio do trigo”, como lecionou Nosso Mestre e Senhor Jesus, cai dia a dia, progressivamente, em estado de desesperança quanto à Espiritualidade, associando os descalabros das religiões a – horror dos horrores – uma pretensa inexistência de Deus.

Na noite anterior, mais uma vez, Gerard pugnara arduamente contra essa desgraça que assola corações de milhões de criaturas. Não são poucas as que se apressam em concluir que, por haver maus(ás) religiosos(as), a Divindade não deve existir – algo equivalente a afirmar, conforme ponderava o professor, que, por encontrarmos mercenários(as) entre médicos(as) ou empresários(as) da medicina, deveríamos todos(as) abandonar as ciências da saúde, incluindo a farmacologia, deixando de apelar, destarte, para consultas a especialistas, terapias medicamentosas ou mesmo cirurgias, quando necessárias.

A plateia o aplaudira de pé. O auditório sempre cheio. Afinal de contas, havia pessoas inteligentes e esclarecidas o bastante para reconhecerem que aquele, sim, realmente era um autêntico e salvador Discurso Divino, lamentavelmente solitário… Um cansaço, um sentimento de saturação além do habitual, de profunda e dolorosa descompensação psicológica, o abatia. Em seu coração, Gerard sabia que não queria magoar ninguém, nem pretendia ferir crenças quaisquer que fossem, muito menos os sentimentos de adeptos(as) doutros segmentos espiritualistas, religiosos e/ou culturais. Mas estava cônscio também de que atraía ondas de hostilidade gratuita, mesmo que abafadas pela natural aura de autoridade moral que se lhe exalava do ser, conjugada à inconfundível e por vezes assustadora Energia do Céu que vazava por seu intermédio.

Lágrimas rolavam em sua face. Andava, outrossim, paralelamente ao contexto de tristeza, extremamente irritado com a popularidade. Três décadas diante das câmeras, semana a semana, constantemente sendo examinado, fiscalizado, criticado. E desdobrava ideias por demais delicadas, frontalmente contrárias ao “establishment”…

Muito embora valorizasse seus(suas) alunos(as) e admiradores(as), desejava, com força crescente, a partilha mais íntima com os(as) “seus(suas) iguais”, por assim dizer – aqueles(as) que o compreendiam e vibravam da mesma forma, que tinham de fato propósitos idênticos aos seus… Estavam eles(as), porém, no outro Domínio da realidade: o Espiritual. O canal mediúnico ostensivo que portava, como conquista evolutiva, entre outras, de sua “velha alma”, era-lhe a máscara de oxigênio diário, sobremaneira quando quedava em prece e meditação mais aprofundadas.

Todavia, isso não mais lhe estava sendo suficiente. Mergulhado, pela encarnação, no mundo físico, recebia em contrapartida, com frequência e intensidade variadas, ondas de ódio indescritivelmente cansativas – para utilizar um termo suave –, em resposta a sua conduta “arrogante” e “atrevida” de enfrentar as normas da moral vigente, posicionando-se, para completar, como de ordinário, de modo sumamente persuasivo e carismático, lógico e racional, inclusive (e principalmente) exemplificando em seu comportamento diuturno tudo o que pregava.

Lembrava-se de seus(suas) predecessores(as), os(as) que estiveram, em cada época e povo específicos, carregando o bastão da vanguarda do Bem e da Verdade Celeste. Vários(as) foram libertados(as) cedo do aparelho fisiológico… Complexos sentimentos lhe assomavam ao coração… Um misto de esperança de que sua sina fosse também partir mais cedo do mundo material e, por outro lado, de culpa por estar parcialmente desejando se afastar de uma Obra tão importante e necessária para o esclarecimento e consolação de milhões de almas feridas, sistematicamente, por um sistema opressor dos(as) desfavorecidos(as), segundo os valores da dimensão física de existência.

Já há alguns meses, sentia essa impressão íntima de exaustão… Começara a recorrer, nas últimas semanas, diretamente aos(às) Signatários(as) de seu projeto reencarnatório. Perguntara, por mais de uma vez, com aguda sinceridade (assustadora para ele), aos(às) Avalistas de seu programa cármico, se não havia chegado o instante de retornar à Pátria Espiritual. A luta dele não estaria sendo inglória? Ou, noutra linha de argumentação, não teria sido o bastante passar mais de 30 anos, frente a multidões infindáveis, manifestando opiniões desconfortáveis à maioria dos(as) ouvintes?

Queria tanto, em suas palestras, motivar as pessoas, para que saíssem leves e inspiradas!… Ele tinha, contudo, a coragem de propor uma rota mais realista de felicidade, que perturbava num primeiro momento, mas propiciava benefícios posteriores muito maiores… só que a um custo tremendo para ele, que era “a Voz a clamar no deserto” dos dias atuais.

Graças a essa sua disposição invulgar, os Guias Espirituais muito frequentemente, mês sobre mês, ano sobre ano, década sobre década, lhe pediam para prosseguir expondo, ainda que fosse visto pelas massas como antipático, incômodo e inconveniente, as verdades que tantos(as) conhecedores(as) do assunto espiritual se negavam a apresentar publicamente, enquanto muitos(as) outros(as) sequer tinham lucidez, cultura e caráter para percebê-las ou admiti-las para si mesmos(as).

O preclaro professor-médium concluiu seu solilóquio interno. Felizmente, por utilizar o português como língua primária, ao indagar às Autoridades Espirituais se não seria hora de voltar ao Plano Espiritual, podia melhor traduzir seus sentimentos atordoantes, distinguindo a iniciativa de “perguntar” da de “pedir” – isso ficaria um tanto ambíguo em inglês, por exemplo, com o bem usual verbo “to ask”. Estava, assim, reforçava consigo próprio, apenas “perguntando” e não “pedindo”.

Nessa madrugada diferente, a luminosa Sophia apareceu-lhe mais melancólica que o habitual, mas inalteravelmente serena. Disse-lhe somente:

– Cuidado, meu amado amigo e caro colega de trabalho… Perguntas reiteradas constituem, em nível de profundidade, por uma questão de conceito e não de vernáculo, a despeito das especificidades linguísticas da lusofonia, o mesmo que uma declaração de pedido.

Gerard se recompôs, ergueu a coluna, mudou o tom da oração que, a esta altura, já fazia à meia-voz, alterando o curso de seu diálogo com a Esfera Sublime de Consciência:

– Ajudem-me, amados(as) Amigos(as) Espirituais, a superar essa fase mais difícil de exaustão emocional e física. Sou honrado pela Misericórdia Divina em servi-l’Os(As), auxiliando tantas almas a se afastarem do destrambelhamento do desespero e de toda ordem de atitudes autodestrutivas. Socorram-me em minha tão falível humanidade. Concedam-me, por mercê da Clemência Celestial, motivação para seguir em minha tarefa, pela máxima extensão de tempo que me for possível desfrutar, mantendo, quanto esteja em meu alcance, a mais elevada sintonia com a Espiritualidade do Bem.

A partir desse augusto instante, éramos nós que ocultávamos, com dificuldade, as lágrimas – eu e mais dois de meus alunos, que estávamos autorizados a acompanhá-lo, mais de perto, na superfície terrena, enquanto a ínclita Sophia confabulava com Gerard à distância, pelo sem-fio do pensamento, na sagrada sinergia psicoespiritual que os unia, filho e Mãe, há séculos de séculos…

Juntos, comovíamos e orávamos à Intérmina Piedade de Deus-Mãe… Que o benemérito professor Gerard e seus(suas) tutelados(as) e cooperadores(as) encarnados(as) fossem amparados(as), inspirados(as) e conduzidos(as) pela Divina Sabedoria. Era nossa prece naquele momento… é nossa oração de todos os dias… e também nosso compromisso de ação por viabilizar o que nos seja permitido fazer nesse sentido…

Os destinos de milhões de criaturas e de um imenso movimento global de conscientização jazem nas mãos do profeta pouco reconhecido – como sempre são todos(as) os(as) legítimos(as) representantes das Alturas. Sua influência cada vez mais atinge comunidades colossais… desde magistrados(as) e legisladores(as) de diversos países a formadores(as) de opinião na mídia, na internet, nas artes, no universo acadêmico, em todo lugar onde se conheça português ou inglês… E, incrível, apesar de deveras controverso, seu discurso atrai legiões intermináveis de seguidores(as) nas redes sociais, beneficiando um número ainda maior de dezenas de milhões de pessoas indiretamente… Ou já seriam atualmente centenas de milhões?…

Um “silêncio profundo” se fez de Mais Alto, quando cogitei da envergadura ciclópica da missão de Gerard e Sophia, naquela inolvidável madrugada… E estávamos falando desta década, deste século… O que poderia estar por vir?…

Que Deus-Pai proteja esse homem! Que Deus-Mãe envolva esse valoroso coração a serviço do Céu, que se exila na crosta da Terra, em delegação de grave responsabilidade e serviço contínuo como porta-Voz da Espiritualidade Excelsa, nesta era tão crítica da história da civilização humana!…

Gustavo Henrique (Espírito)
Benjamin Teixeira de Aguiar (médium)
22 de janeiro de 2020