(Episódios com o professor Gerard – 7)

A ínclita Sophia de Alexandria quedava-se grave, em “solilóquios” distantes, confabulando com Seres do Plano Sublime, com Quem Ela partilha comunhão direta. Seu semblante, naquela noite, parecia denso, olhar perdido no infinito, quando a encontrei em seu gabinete de trabalho – um misto de sacrário e sala de reuniões para seus(suas) assistentes mais diretos(as), entre os(as) quais tenho a honra de me sentir incluso.

Logo que cheguei à câmara ampla, mas sóbria, em impulso instintivo de ex-sacerdote católico, ante a atmosfera devocional que a emoldurava, saldei-a:

– Às ordens, veneranda madre!…

A mestra espiritual não demonstrou incômodo pelo meu modo cerimonioso de tratamento, como se fosse de todo desimportante, diante das reflexões sérias que a absorviam, e passou diretamente ao tópico que provocara o seu chamado à minha pessoa:

– Gostaria que você visitasse, por gentileza, junto a irmã Beatriz, nosso estimado Gerard.

– Pois não. Sou todo ouvidos para as instruções mais específicas sobre a tarefa.

– Irmã Beatriz disse-me que nosso amigo encarnado tem-se recordado com frequência de Ilda, que, na última existência, foi irmã biológica dela e avó materna dele. Presumimos que as saudades de nossa Esfera estejam recrudescidas. O professor tem consciência da relevância de sua missão, mas os desgostos sucessivos e atrozes, em tão complexa função que exerce, conduzem-no a uma perigosa conjuntura, que pode gerar (conquanto não seja esse seu propósito) um efeito em cadeia de autodestruição de seu organismo material, com o surgimento, por exemplo, de uma moléstia insidiosa e letal.

– Sim, reverenda, recordo-me de episódios semelhantes, que ocorreram nos anos recentes. Felizmente, nosso companheiro está cônscio do perigo envolvido nesses estados emocionais mais pungentes e normalmente, sem que o inspiremos a isso, tenta reverter sozinho o padrão psicológico infortunado, com os recursos que tem à mão, sobremaneira devotando-se mais ao serviço de esclarecimento e consolação das multidões que procuram seus préstimos públicos. Ele tem-se portado assim atualmente, pelo que tenho observado. Estou certo?

– Há uma novidade, entretanto…

– Pois não, senhora…

– Nos últimos dias, Gerard tem estado corretamente preocupado com o andamento de expansão da Obra, por flagrar-se sabotando, quase que por iniciativas diretas, os movimentos de divulgação mais ampla. Consegue, aqui ou ali, deter seu impulso de frear atividades da equipe de divulgação da Causa, mas, ainda assim, o incômodo com os novos trunfos conquistados, ao serem vinculados como créditos à pessoa dele, tem-no deixado realmente abatido. Vivencia, com ardor sincero de vexilário do Ideal que representa, o natural afã de que mais almas sejam socorridas, pelo ministério desdobrado por nossa Escola de espiritualidade cristã. Todavia, saturado da extrema visibilidade pública, década sobre década, constrange-o ficar mais exposto do que já está. Adentrou nova crise de saturação, nesse particular, por seu temperamento inclinado a atitudes mais reservadas.

– O que a senhora planeja e julga devamos fazer?

– Gostaríamos que o ajudasse, numa experiência fora do corpo, levando-o a visitar uma de suas filhas do coração, que jaz distanciada de sua (não reconhecida como tal) influência parental. Irmã Beatriz e Ilda (a avó de Gerard) acompanhá-lo-ão na jornada.

– Não sei se compreendi bem… O contato com essas filhas espirituais costuma crivá-lo de aguda melancolia.

– De fato. Mas é que conseguimos estabilizar, relativamente, o diapasão emocional de uma delas, e Gerard vai-se sentir bastante gratificado em percebê-la melhor.

De uma perspectiva humana, o espírito alcandorado de Sophia não se decepciona propriamente com as pessoas, mas se entristece com elas, às vezes profundamente. E o diálogo com a insigne preceptora prosseguiu:

– E quanto ao fato de elas suporem-no desejoso de vê-las padecendo por suas manifestações de injustiça e ingratidão? Esse gênero de especulação o fere muito…

– Já tomamos providências para evitar isso. A tal irmã encarnada sofrerá uma interferência no campo da memória. Só terá a reação que costuma apresentar quando se encontram, raramente, em estado vígil de consciência: deve chorar ao abraçá-lo.

– Mas isso não corroerá mais ainda a sensibilidade de nosso companheiro de esforços no bem?

– Não, porquanto ela não vai chorar de remorsos, como lhe é habitual, mas de alegria por revê-lo!

– Que maravilha! Quando a senhora deseja que realizemos isso?

– Se possível, no transcurso do próximo sono longo de Gerard…

Quase em tom confidencial, mas lamentoso, permiti escapar, entre os lábios:

– Ah… aquele de quatro horas por dia…

– Padre Gustavo… – repreendeu-me afetuosamente, com um esboço de sorriso, a dama distintíssima – Gerard tem feito o possível para completar seis horas diárias de sono, embora nem sempre logre atingir sua meta. Ele tem, frequentemente, complementado o trecho mais longo de sono – a que aludi – com um cochilo ao meio de seu dia de trabalho.

Recompus-me. Incomoda-me deveras a sobrecarga em que vive continuamente nosso amigo, não obstante ser um fenômeno bem conhecido, um padrão que se revela em todas as épocas e culturas da humanidade, o regime de ônus avultado a que se submetem, no plano físico de existência, os porta-vozes do Domínio Sublime de Consciência.

Pouco mais de duas horas após essa breve conversação com a orientadora espiritual, que foi grande filósofa da Antiguidade clássica, no âmbito da cultura grega, estávamos eu, irmã Beatriz e Ilda facilitando o colóquio íntimo entre Gerard e a tal filha do coração, ambos afastados, parcial e temporariamente, de seus aparelhos de matéria densa.

Gerard parecia embevecido, como um ancião sábio e bondoso que contemplasse uma netinha travessa, aliviado por notá-la em condições bem melhores, nesta ocasião. Semi-hebetada com a intercessão benfazeja que sofrera no quadro dos registros mnemônicos, a senhora jovem, sua pupila, sorria animada, qual uma criança, “contando-lhe novidades”. O admirável mentor ouvia-a, enternecido, tocando-lhe carinhosamente os antebraços e fitando-a fundo nos olhos, com um largo sorriso…

Não contive minha emoção. As duas damas que me acompanhavam pareciam-me felizes, empáticas com Gerard. Eu, porém, sempre me surpreendo, a cada oportunidade em que o nosso caro professor, com sua natural bonomia, expressa indulgência e generosidade, como se nada houvesse a perdoar a pessoas que lhe foram extremamente injustas, algumas às raias da blasfêmia.

Aquela nossa irmã encarnada era um exemplo emblemático dessas criaturas. Devia gratidão a Gerard não só pelas orientações de todas as ordens que lhe recebera, durante a infância, a adolescência e parte expressiva da vida adulta, mas também por tudo que tinha de razoável, em termos de alicerces de fé, princípios morais e práticas na seara da solidariedade cristã… E, contudo, nutria opiniões tão absurdas a respeito dele… Deixara-se enovelar, de forma grosseira, a pouco e pouco, em uma teia bem urdida de insinuações diabólicas de agentes da desagregação (das duas dimensões de existência), acabando por perder o tão benéfico convívio íntimo com o canal das Potestades do Bem.

Havia, igualmente, por outro lado, uma trama engendrada por gênios do mal que queriam ferir, por intermédio dela, os sentimentos diamantinos do educador de multidões. Ele, no entanto, com o passar dos anos, prosseguia em sintonia progressivamente mais acendrada com a Faixa Consciencial da Bondade e da Sabedoria, enquanto ela avançava, a passos largos, cada vez mais profundamente, pelo pântano moral das velhas hipnoses de hipocrisia religiosa da cultura terrena, com tremendos prejuízos e inqualificáveis consequências para sua rota de destino, tanto na presente encarnação quanto no além-túmulo… e, quiçá, também em próximas romagens no mundo material…

Ah, as terríveis invigilância e falta de autocrítica dos(as) que se julgam vítimas de situações em que, se não agiram como vilões(ãs) conscientes, funcionaram à guisa de títeres de forças infernais, que tentam se lançar contra as Obras de Deus sobre a Terra!…

Que a Divina Misericórdia se apiede de suas almas. Apegam-se a convenções moralistas, que não passam de preconceitos mesquinhos. Interpretam acontecimentos da maneira que lhes apraz aos egos inflados e caprichosos. Confiam-se a decisões tenebrosas, dando as costas à Graça Celeste, que lhes ofertara precioso ensejo existencial. E amiúde fazem pior: voltam-se contra a Fonte de bênçãos em que tantas vezes buscaram dessedentar seus espíritos sequiosos de luz e paz…

Logo que seus interesses diretos e ególatras são feridos, substituem suas agendas e prioridades de vida e não conseguem vencer períodos de tentação que seriam relativamente fáceis de facear. Preferem a ótica da vítima, convertendo-se, tragicamente, em algozes daquele a quem mais elas devem, confidenciando-se com outros caracteres perturbados que, na pompa da falsa decência, as estimulam a acentuar o uso de lentes distorcidas da realidade, tudo enxergando pelo avesso…

Dessarte, em sentença macabra que lavram contra si mesmas, elas, que um dia portaram cabeleiras fartas de graças sobre as cabeças, têm-nas transfundidas, por força do carma inapelável de suas más escolhas, em tétrico ninho de serpentes… de ideias sofisticadas de malícia e astúcia, qual a medusa da mitologia grega, presumindo identificarem perversidade e baixeza onde somente havia e há bondade e serviço luminoso às Sagradas Autoridades Espirituais que regem os destinos da humanidade…

Que elas façam por merecer, de algum modo, a intervenção da Piedade Suprema, porque, não raro, por lei espiritual indefectível de respeito ao livre-arbítrio e ao discernimento de todo ser humano, muitos(as) são os(as) que, em circunstâncias sombrias que tais, sintonizam-se com a implacável e sempre perfeita Justiça de Deus, pagando terríveis estipêndios de dor, por tempo indeterminado…

Benjamin Teixeira de Aguiar (médium)
Gustavo Henrique (Espírito)
Bethel, CT, região metropolitana de Nova York, EUA
30 de novembro de 2020