Benjamin Teixeira
pelo espírito
Gustavo Henrique.

Zé Peneira já estava desencarnado há 30 dias, no sertão bravo de Sergipe… pervagando numa região do plano espiritual que ele não conseguia identificar como tal (supondo-se ainda encarnado), em tudo idêntica à caatinga a que estava acostumado. Sede, fome, cansaço extremo. O sol escaldante… De repente, no meio do nada, percebeu uma casinha de barro batido e telhado de palha, d'onde fumegava fragrância apetitosa.

– Nossa! É jabá! Que fome! Vou ver se me dão um prato de comida… – falou alto, com seus botões.

Aproximou-se do casebre humílimo de “sopapo” (*1) e, falando tímido, em tom baixo de voz, disse, pela janela aberta, depois de bater duas palmas:

– Ô, de casa? – repetindo mais duas vezes.

Um silêncio profundo foi a resposta inicial. Mas Zé Peneira começou a sentir uma paz estranha… foi ficando sereno… e, então, como se lhe aparecesse instantaneamente, viu uma figura de negra gorda, muito simpática, de talvez 60 ou 65 anos, que, num enorme sorriso acolhedor, quase comovente, para o coração carente e triste de Zé Peneira, disse:

– Oi, “fio”! tudo bom? ‘Cê “qué” alguma coisa de Mãe Nega?

Estimulado pelo carinho e receptividade da sua interlocutora, explicou-se:

– É que eu vinha passando por aqui… com fome… e senti esse cheirinho de comida boa… Sabe… e eu ‘to há tanto tempo sem comer… que eu pensei de pedir um pratinho de comida a quem ‘tava fazendo comida assim tão cheirosa…

– Ah! sim, “fio”! Claro! Entre agora mesmo! Mãe Nega vai “siurvir” ‘ocê!

Caminhando com dificuldade, como se tivesse problema sério nas articulações da bacia, muito larga pela obesidade, mas com enorme sorriso angelical emoldurado no rosto, a “negra velha” abriu a portinhola de madeira do tugúrio e fez Zé Peneira sentar-se num tamboretezinho, em frente de uma mesinha simples. Não havia mais mobília alguma, na sala de chão batido (sem piso). Com enorme hospitalidade e doçura maternal, como se recebesse um filho há muito tempo não visto, continuou a figura insólita:

– Senta aí, “fio”, que Mãe Nega vai “siurvir” ‘ocê de um caldo forte de jabá.

O amor que emanava da negra era tão forte, que Zé Peneira – que tanto se sentia indigno de ser amado, e vivera sozinho, carente e triste, por anos e anos consecutivos, trabalhando na roça pequena que conseguira comprar com economias antigas – começou a verter lágrimas discretas, pelos cantos dos olhos, involuntariamente, as quais tentava disfarçar, enxugando-as com as costas das mãos – rugosas, pelo trabalho no campo. Como que lendo seus pensamentos e apreendendo seus sentimentos, disse a maravilhosa figura de mãe:

– Agora, meu “fio”, você nunca mais vai ‘tá só. Mãe Nega vai cuidar d'ocê. Depois que comer, vou botar ‘ocê p’ra dormir, p’ra descansar as perna’, ‘tá “baum”?

Zé Peneira já não escondia as lágrimas, que lhe caíam copiosamente, fazendo esforço p’ra dizer alguma coisa, em retribuição a atenção tão carinhosa e especial. Após alguns segundos, conseguiu, por fim, balbuciar:

– ‘Brigado!

– Ô, “fio”, “num” tem de quê – disse a velha gorda, acarinhando-lhe as costas, levando Zé Peneira a chorar ainda mais. – Você é um “home” bom, Zé. Vai tudo “acabá” bem, meu “fio”. Deus teve pena d’ocê.

Surpreso com a fala no vocativo da até então desconhecida, perguntou Zé Peneira:

– Mãe Nega, como é que ‘cê sabe meu nome?

Sorrindo enigmática, “Mãe  Nega” respondeu, fitando-o pelos cantos dos olhos:

– Mãe Nega sabe de muita coisa, Zé!… Mas, cá p’ra nós… seu nome é bem comum, por essas bandas, n’é, Zé!?

Zé sorriu, infantil. O primeiro sorriso, em um mês. Um dos poucos, em muitos anos.

Ele estava em paz e seguro. “Mãe Nega” era entidade do Plano Maior de Vida, que tomava ares de ser simples, para poder chegar até ele, sem que o pobre homem fugisse espavorido, por não se sentir digno de deferências especiais de quem quer que fosse ou julgasse “superior” a si. Era seu guia espiritual, em forma de “preta velha”, uma amorável e sábia mentora, que viveu, em tempos recuados, na Europa Nórdica, como belíssima mulher de tipo ariano, mas que ali, em plena caatinga nordestina, preferia sempre se manifestar, socorrendo a muitos passantes sofridos do além, tão-somente, como a velha e bondosa “Mãe Nega”.

Há muitas “mães negas” pelo orbe, caro leitor. Cuidado com as aparências! Os seres de luz não gostam de chamar atenção sobre si, e costumam passar pelo mundo disfarçados de andrajos, para tocar apenas os que têm o coração puro e a alma sinceramente aberta e temente (*2) a Deus…


(Texto recebido em 18 de setembro de 2003. Revisão atual de Delano Mothé.)

(*1) Forma de se identificarem, em “sergipanês” do sertão, casas com paredes de barro batido, numa referência ao método de se afixar o barro na estrutura oca de taipas: aos sopapos.

(*2) No sentido de “devota”, acepção do vocábulo mais usada nos meios cristãos convencionais.

(Notas do Médium)