Benjamin Teixeira
pelo espírito
Eugênia.

Eugênia, assisti ao controverso filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, acusado, ruidosamente, de anti-semita, nos Estados Unidos, e, lamentavelmente (não acho confortável dizer), sinto-me na obrigação de afirmar que discordo de tal acusação. Faço coro a uma autoridade católica brasileira que postulou que se o filme for anti-semita, os Evangelhos o são também. Foi o que percebi. Mel Gibson e seus colegas realizaram uma obra muito próxima de uma reprodução fidedigna dos textos evangélicos canônicos, no que tange aos momentos finais da vida de Jesus. De fato, talvez o foco na dor do Cristo, sua tortura, os detalhes horrendos da sevícia, soe de mau-gosto, mas não creio que daí se possa saltar à acusação de anti-semitismo. Mesmo no que concerne às minudências, na tela, da paixão de Jesus, me pareceu uma excelente forma de mostrar a violência como ela é, não como forma de divertimento e sim como algo chocante, repulsivo e abominável. As cenas de violência, na TV e no cinema, têm sido banalizadas, e creio que, como o Cristo disse que a dor de qualquer um era Sua dor, mostrar diretamente a dor d’Ele me pareceu uma forma boa de “escandalizar” (no bom sentido) as pessoas e levá-las a deplorar e rejeitar a violência que tem sido, ultimamente, apresentada como artigo de entretenimento. Notei que as pessoas saíram da sala de projeção com o estômago embrulhado e achei isso muito saudável, psicológica e espiritualmente. Afinal, as platéias costumam, hoje em dia, delirar de prazer com filmes recheados com cenas de brutalidade, selvageria e crueldade. O que você teria a dizer sobre isso?

Concordo, plenamente, com sua conclusão sobre os efeitos em relação à violência, na alma popular. Outrossim, quanto à acusação de anti-semitismo, teremos que enveredar por raciocínios não tão “politicamente corretos”, como se costuma dizer atualmente, mas extremamente necessários. Ninguém considera abominável a iniciativa de mostrar claramente o que se passava nos campos de concentração nazistas, retratando-os em produções para a televisão ou o cinema. Muito pelo contrário: a crítica aplaude – muito justamente – a propaganda de alerta contra a selvageria a que se pode confiar o ser humano, livre dos freios do bom senso. Ninguém postulou, até hoje, que tais filmes constituiriam uma campanha nefanda contra o povo alemão. De reversa maneira, o povo alemão de hoje, conscientizado e esclarecido, sofre de profunda dor moral, com a culpa coletiva de seus antepassados, reconhecendo os horrores perpetrados, no pretérito, por sua nação. Isso indica maturidade da psique coletiva e também das instituições daquela antiga e respeitável nação européia. Lamentavelmente, não notamos isso por parte do povo judeu, apesar de seu grande crime ter sido cometido não apenas há sessenta anos, mas há vinte séculos. O orgulho e a inflexibilidade judaicos parecem, lastimavelmente, à prova de todas as dores, e, por isso mesmo, elas se multiplicam no correr dos séculos, porque o objetivo da dor é o crescimento espiritual, que terá que ocorrer, de uma forma ou de outra. Por causa desse baixo grau de auto-consciência, até hoje, os judeus nivelam-se com os árabes, em disputas intestinas e bestiais de território, como se ainda estivesse presos ao nível tribal de civilização. O povo judeu, como o árabe (fazendo alusão principalmente à sua facção xiita), ainda sofre das ilusões arrogantes dos que se sentem isentos de culpa, dos que se julgam, o centro do mundo (o que denota narcisismo infantil) e não admitem cometer erros. Jesus foi o maior luminar humano de todos os tempos. E não afirmamos isso por sermos cristã e sim porque é Ele a base da civilização ocidental, hoje hegemônica, que, nos seus aspectos mais poderosos, prega as liberdades democráticas e individuais, e o respeito ao ser humano, de uma forma geral, como nenhuma outra civilização antes o fez ou por agora longinquamente faz. Este Homem foi bárbara e injustamente sentenciado à morte, por um processo nefando de articulação política das autoridades judaicas da época. Roma, naquele contexto, foi apenas manipulada fortemente, no sentido de atender à sanha assassina e fanática das autoridades do cinédrio, já que a intenção pragmática dos romanos era sempre evitar sedições populares em suas províncias, o que, capciosamente, os figurões do povo judeu fizeram parecer crer que aconteceria. Isso está presente, de fato, nos Evangelhos sinópticos e concordo que teríamos que questionar a autoridade não só dos Evangelhos, mas também da História, já que sabemos que Jesus foi uma personagem histórica, e que tem-se o registro até mesmo de sua morte, no vanguardista sistema de documentação administrativa do povo romano: 7 de abril do ano 33. E sabe-se, por outro lado, que Roma não teria jamais interesse em executar publicamente, alguém que pregava pacifismo e obediência às autoridades constituídas (lembremo-nos na passagem do “dar a Cézar o que é de Cezar), como aliás demonstrou com sua atitude de não reagir à prisão e execução sumária. Imaginemos se alguém teria poder de influência para confrontar o carisma e oratória de Jesus, o homem mais persuasivo de todos os tempos? Ele, porém, entregou-se, inerme, aos seus inimigos, sabendo tratar-se isso da Vontade de Deus. O povo judeu, sem dúvida alguma – teríamos que negar todas as verdades eternas se disséssemos o contrário – contraiu pesadíssima, gigantesca dívida cármica coletiva com tal ignomínia. Não por acaso, apenas 37 anos depois, no ano 70 de nossa Era, o povo de Israel foi cruelmente chacinado e por fim expulso de seu território, passando quase dois mil anos sem pátria, sendo perseguido e sofrendo atrocidades por onde passou. E, ainda depois da constituição do Estado de Israel, em 1948, vê-se o que tem sofrido o povo judeu daquela região. Obviamente, jamais endossaríamos qualquer atitude anti-semita, como qualquer ordem de fanatismo, discriminação ou preconceito com este ou aquele povo. Mas não reconhecer um fato histórico, sobretudo um de caráter criminoso e hediondo como a tortura e assassinato do maior Homem de todos os tempos, à guisa de parecer moderno ou esclarecido, equivaleria a dizermos que não é digno e justo condenarmos um criminoso à prisão ou submetermo-lo a julgamento justo, sob pretexto de ser isso atitude discriminatória e politicamente incorreta. Não podemos perseguir, nem maltratar o povo judeu, por motivo algum, como nenhum povo, etnia ou minoria da Terra. Mas, para o bem desse mesmo povo, caberia que amadurecesse e revisse sua história, seus conceitos sobre si, sua auto-imagem exageradamente idealizada, ainda sob o signo da fantasia do complexo de vítima e de santidade. É nesse sentido que julgamos muito imatura a postura dos judeus da modernidade. Não somos nós agora que devemos tratá-los de modo diferente – isso já foi feito no passado e injustamente, porque a ninguém cabe cobrar pelos erros de outrem, a não ser na exata medida para impedir que esse indivíduo volte a cometer a mesma infração, como no caso de criminoso alijados do convívio social. Aliás, nós próprios, como civilização ocidental, temos sido, há muitos séculos, extremamente auto-críticos com relação a nossos ideais religiosos, políticos e filosóficos, revendo e reconstruído nossas instituições e ideologias. Eis porque, as Santas Cruzadas, equivalentes à jihads de hoje são páginas passadas de nossa história, assim como os tribunais da Santa Inquisição. Agora, é o momento de o povo israelita sair de sua eterna adolescência espiritual, travestida de arrogância e pretensão de superioridade, para perceber seus crimes e seus erros, a fim de que não venha a repeti-los, em escala coletiva, como hoje estamos percebendo ser possível acontecer, nos conflitos perigosos do Oriente Médio, que terão, inevitavelmente, repercussão global.

Eugênia, e para nós, não-judeus, principalmente cristãos, como devemos entender nossa relação com a “Paixão de Cristo”?

Primeiramente, contextualizemo-nos melhor. Jesus era elemento do povo judeu. Isso significa dizer que temos que nos inserir na realidade d’Ele, para apreendermos o simbolismo completo de Seu padecimento final, e, por conseqüência, a lição que lhe subjaz. O povo judeu, sobremaneira, no estudo específico da paixão de Cristo, as autoridades políticas e religiosas de Israel representam nós mesmos, que, diuturnamente, traímos o Cristo, seviciamo-l’O e crucificamo-l’O. Por isso, falamos que a questão anti-semita é estúpida, e diz respeito à consciência do próprio povo judeu, convidado, pela vida, a alcançar um nível maior de maturidade psicológica. De nossa parte, cristãos, devemos entender que nós todos somos os judeus daquele tempo, inclusive, em muitos casos, literalmente, porque os que participaram, diretamente, patrocinando ou incitando o crime da Cruz, reencarnaram mais tarde, dentro das fileiras cristãs, para ressarcirem-se pelo mal cometido à Causa Crística. Jesus, assim, simboliza nosso ideal superior, nossas vocações mais nobres, nossos aspectos mais dignos e elevados de ser, agir e sentir.
Nós somos Pedro que nega Jesus, por medo de sermos prejudicados pelas conveniências do mundo material.
Somos Judas, que priorizou as questões políticas e econômicas, sobre as espirituais, e que nos desesperamos ao perceber que o Cristo não reagiu, no confronto com o poder do mundo, sendo por ele “derrotado”. Somos nós também Judas, quando, ao reverso de trabalhar pela nossa redenção, nos “suicidamos”, abandonando as oportunidades de serviço árduo, na reforma íntima e no trabalho duro por nos compensar pelos erros de antanho.
Somos nós também Pôncio Pilatos, com seu pragmatismo egoísta, que, apesar de não ter intenção de fazer mal a Jesus e até tentar salvá-l’O da sanha assassina da cúpula judaica, “lava as mãos”, na omissão preguiçosa dos que não querem se comprometer diretamente com causas superiores.
Somos os soldados romanos que seviciaram Jesus, somos os demais discípulos e beneficiados da véspera que fugimos espavoridos na hora-maior, somos o próprio Cristo, dentro do ideal torturado, sentindo-nos sós, em meio a uma multidão de forças contrárias ao espírito e à fé.
Mas, sem sombra nenhuma de dúvidas, somos também as autoridades maiores do povo judeu, que, cínica e irresponsavelmente, pomos a prender e providenciamos o sentenciamento, a tortura e execução de nosso ideal superior, o Cristo interior.

É… Eugênia… por isso tantos passam tão mal nos cinemas, ao assistirem ao filme. Projeção, não é?

Não é o único motivo, mas, a projeção acontece sim, ainda que inconsciente. O anti-semitismo, portanto, seria uma grande perda de oportunidade de crescimento interior, porque desviaríamos o foco de nós mesmos para procurar culpados fora. O culpado é cada um de nós. Somos nós que crucificamos o frágil deus-interior, todos os dias. Nosso Cristo-íntimo não é como o Jesus poderoso do Sermão da Montanha, mas como aquele pálido, cadavérico e ensagüentado, condenado e moribundo Jesus na cruz. Todavia, se não assumimos nossa parcela de responsabilidade em cada aspecto psicológico da crucificação mística de nosso Jesus-interior, jamais sairemos do drama da crucificação, passando à glória da Ressurreição.

Interessante essa sua visão. Significa, então, que muitos de nós estamos presos ao drama da Cruz, simbolicamente, por encarnações inteiras…

Exatamente. E há daqueles que preferem morrer assim a se modificarem. Há encarnações-paixão de Cristo, como há encarnações-tumba do Cristo, e, por fim, as raras encarnações-Ressurreição, em que nosso Jesus-interior se manifesta pujante e superior a todas as vicissitudes do mundo exterior. A esmagadora maioria da população terrena, porém, ou está na fase da tortura do eu-divino, ou está no estágio de incubação desse Eu Supeiror, para o ressurgimento mais forte, de futuro.

Como seriam as encarnações incubação?

Um exemplo clássico seria o das pessoas que se retiravam do mundo, no passado, para que pudessem meditar mais profundamente, e, um dia, retornarem, seguras de sua conexão divina, para o contato e o convívio com a multidão, servindo-a em nome de Deus. Isso, obviamente, não pode mais ser interpretado, literalmente, porque tais caminhos existenciais denotam muito mais negligência que processo de santificação. Mas, de modo metafórico, encontramos pessoas que, muito embora ativas externamente, aplicadas a suas vidas profissionais e familiares, internamente sentem-se alimentando, lapidando ou fermentando seu Eu-espiritual, para que, num futuro longínquo, possa Ele surgir com toda sua pujança. São pessoas que já não vivem os grandes dramas da paixão e da cruz, ou seja: não sofrem mais cruentos conflitos entre o bem e o mal ou entre seguir a sua consciência ou os impulsos do ego, todavia, não podem ser chamadas também de pessoas santas, porque não se devotam, integralmente, ao ideal espiritual. Um dia, porém, fá-lo-ão, nesta ou em outras, porvindouras reencarnações. A maior parte das pessoas, contudo, deve procurar encontrar, em si – eis a melhor forma de utilizarmos esse paradigma desevolvimentista tripartite do despertar espiritual – as três fases, em percentuais e áreas diferentes em sua alma. Destarte, ninguém é plenamente de um dos estágios, mas dos três ao mesmo tempo, vivendo-se em medidas e departamentos diferentes de sua vida cada um deles, até que esteja completamente assimilado pelo padrão superior do Cristo-Ressurrecto e, assim, dispense, até mesmo, a necessidade de sofrer reencarnações.

Muito interessante, Eugênia. Mais algo a dizer sobre o assunto?

Sim, que, pelo fato de tanto focarmos o símbolo da cruz – o que revela, claramente, a identificação da maioria com essa fase de despertar espiritual – acabamos por fixar nossas mentes nesse padrão de dor e “fracasso” moral. É hora, porém, de compreendermos, espiritual e psicologicamente, que o drama da cruz é um período e não um destino; uma transição e não a essência de um processo, para que não nos evadamos de nossos esforços de espiritualização, crescimento íntimo e realização do melhor, por não querermos a derrota. Lembremo-nos e foquemos o Cristo-Ressurrecto, o Jesus vencedor da morte, porque é esse o nosso fim, a nossa universal e maravilhosa destinação. Que tenhamos em mente que a paixão de Cristo durou apenas algumas horas e que a glória que a antecedeu e, principalmente, a que lhe sucedeu, tanto é imensurável, como não terá fim. Com esse novo modelo de leitura da realidade conflitiva de estar encarnado e de se ser um espírito em processo de transição entre níveis evolutivos, fica mais fácil pôr a dor em perspectiva, e, assim, compreender-lhe a finalidade implícita de aprendizado e felicidade, para que, um dia, de fato, possamos plenamente mergulhar na eternidade de conexão absoluta com o Criador.

(Diálogo travado em 23 de março de 2004.)