Benjamin Teixeira
pelo espírito
Eugênia.

Eugênia, nesta semana, um autor de sucesso internacional publicou uma obra em que, a certa altura do texto, parece defender o sadomasoquismo, procurando lhe dar fundamentação filosófica e mesmo espiritual, ao dizer que faz parte da natureza humana gerar e sofrer dor, como fonte de prazer e vitalidade, embora adiante, no mesmo livro, pareça também tentar desfazer tal impressão. Diante dos morticínios terríveis a que se assiste nos noticiários e manchetes de sempre, com milhões de ávidos expectadores, diante do que mártires e santos disseram haver de bom e divino nos auto-flagelos, o que você teria a nos dizer?

Se realmente defendeu tal tese, o autor cometeu redondíssimo e lamentável engano, induzindo a pensamentos, sentimentos e atitudes inadequados milhões de pessoas em todo o mundo. Foi corajoso, sem dúvida, em apresentar tão abertamente o tema, mas não teria compreendido o assunto na profundidade que supõe possuir. As pessoas contemplam a dor e se infligem sofrimento reciprocamente, porque são desesperadamente carentes e inseguras, e não porque esse comportamento, em si, gere prazer. Nos complexos meandros da mente humana, magnificamente capaz de malabarismos quase milagrosos de adaptação a qualquer circunstância, o indivíduo acaba por associar prazer a situações dolorosas, como uma tática de última instância para suportar e transcender situações insuportáveis. Assim, o que o sadomasoquismo revela, não só nas expressões da tara sexual conhecida, mas em todas as suas manifestações cotidianas, na vida de indivíduos e povos, é o que a mente e a alma humanas, brilhantes em sua capacidade divina de gerar vida em meio a condições desfavoráveis, pode chegar a fazer, para viabilizar a vida, quando ela quase se torna inviável.
Como o sofrimento é mecanismo indissociável ao processo da vida, nos níveis mais primitivos de evolução, tais quais os da Terra, como meio de compelir a transcendência dos seres, pela destruição do velho e do inadequado, e a fomentação do novo e do apropriado, muitos resolvem-se apaixonar pelos trâmites de opressão e destruição que lhe caracterizam, em vez de focarem as suas finalidades superiores de crescimento e evolução dos seres.
Por outro lado, uma outra causa profunda existe, embora indireta, numa falsa ideologia de sobrevivência nos níveis mais baixos de expressão da consciência, que poderíamos chamar do paradigma do vencer/perder, conforme alguns autores do plano físico nomeiam. Segundo essa forma de ler a realidade, para que alguém possa sobreviver e vencer, outrem tem que perder e fenecer. Dessa forma, os sádicos encontram prazer em destruir e oprimir, ao passo que masoquistas, no afã de conquistar o amor de outros, rendem-se a suplícios desnecessários, tentando atender-lhes ao impulso de supremacia. Ambas posturas altamente doentias e equivocadas, já que sabe-se, desde a análise de tendências na política internacional, como nos jogos de relações comerciais, que as únicas negociações duradouras e de fato eficazes na promoção do êxito são aquelas baseadas no paradigma do vencer/vencer. Ou seja: a felicidade e o sucesso de um só é viável com o sucesso e a felicidade do outro. Todas as partes têm que ganhar, ou todas perdem, já que, na dança do vencer/perder, a oscilação é fatal: quem hoje ganha, amanhã inexoravelmente perderá. Curioso e irônico notar que os sadomasoquistas, falando daqueles que se entregam à conhecida e esdrúxula mania sexual, sabem disso, e estabelecem regras, para que, em última análise, ninguém sofra “de verdade” e todos tenham prazer, dentro do drama ensaiado de submissão e domínio.
Vou deixar para tratar dos santos e mártires mais tarde, embora ainda neste diálogo.

Fantástico, Eugênia. O que você propõe, como cura, para esses processos, que, pela sua perspectiva, são realmente patológicos – estou certo?

Sim, está certo. Não estamos dizendo pecaminosos, mas patológicos, sim, como um desvio complexo da força vital para condutas auto-destrutivas e destrutivas, já que não se consegue gerir com equilíbrio a força de renovação que permeia todos os processos da vida. Para não enlouquecer, ante o incompreensível para elas, ou não arrebentarem de dor, ante a revolta contra o inapelável: o sofrimento, algumas almas mais hedonistas engendram o intrincado mecanismo da fantasia sadomasoquista, para sobreviver ao seu baixo grau de auto-conhecimento e de sabedoria ante as grandes questões da vida.
O que recomendo a pessoas que estagiam ou se sentem tentadas a enveredar pelo campo doentio do sadomasoquismo é se conhecerem mais, em profundidade, a fim de que possam entender que os complexos de culpa, de inferioridade, de inadequação, de angústia existencial ante a falta aparente de significado para a vida podem ser processados tranquilamente, gerando bem estar e paz, sem que se apelem para tais mecanismos compensatórios que, além de mórbidos, podem se fazer perigosos, afora o fato de desperdiçarem toda uma força de transformação que deveria ser aplicada para o crescimento, para a evolução da consciência em busca de níveis mais altos de felicidade, de bem-aventurança, e não para o estacionamento na dor, como um destino fatal da espécie humana.

Agora, creio que seria compatível com o ponto em que nossa conversa chegou você abordar a questão dos mártires e santos do passado, sim?

Sim. O que acontecia no passado era uma falha na compreensão das relações matéria-espírito, corpo e alma. Assim, os grandes místicos eram induzidos, por, repetimos, uma compreensão incorreta do que seja a vida e seus processos de auto-transcendência, a lacerarem o corpo, em nome do espírito. Gautama Buda, bem antes de Cristo, já havia apontado para o grande equívoco dos ascetas, que seguiam o caminho da laceração do corpo, da abstinência sexual e da inanição, como um meio de atingir a iluminação. Disse, com grande acerto, o iluminado do século VI a.C., que havia um desequilíbrio tão grande em tal conduta, como existia na preocupação excessiva com o bem estar do corpo físico, com total descaso para com as necessidades e aspirações do espírito.
Quanto ao êxtase sentido por essas pessoas, quando submetidas a longas e cruentas sevícias, mais uma vez lembramos o poder excepcional da mente e do corpo humanos, em gerar compensações para situações-limite. Atletas em estado de profundo esgotamento, após longa jornada de esforço físico, falam do enorme prazer que desfrutam, com as altas doses de endorfinas despejadas na corrente sanguínea pelo organismo à beira do colapso, a ponto de alguns, de fato, sofrerem desgaste precoce ou mesmo a morte, pelos abusos perpetrados contra o soma, no afã de repetir a sensação de prazer em situação supra-normal.
O mesmo se pode dizer em relação ao uso de outras drogas, não mais as endorfinas – que literalmente significam: drogas internas – mas também as drogas que se ingerem. Quando um indivíduo está sob efeito do álcool ou da cocaína, por exemplo, tem uma sensação momentânea de prazer e relaxamento, na primeira, de excitação e agilidade na segunda, mas as lesões deixadas no cérebro, ambas com poder de encolhê-lo pela devastação do tecido neuronal ( a cocaína muito mais) são terríveis, irreversíveis. Não só não há ganhos permanentes no estado de consciência (o estado de prazer é sempre momentâneo), como ainda se conseguem perdas irreparáveis no sistema nervoso central e em outros departamentos do organismo. Observem-se as pessoas que fazem uso regular da maconha e perceber-se-á claramente a perda de capacidade cognitiva, mnemônica, criativa e de abstração a troco de uma pseudo-serenidade que representa uma sangria da psique, que é mutilada, paulatinamente, até a total idiotização do indivíduo. Isso nos faz lembrar o que acontecia em séculos passados, quando médicos, com a melhor das intenções, levavam a efeito sangrias, em seus pacientes, para lhes estancar a febre. Animavam-se todos em torno, pela baixa imediata do estado febril – como não poderia deixar de ser: drenava-se sangue para fora do organismo, a ponto de este não conseguir mais gerar o mecanismo emergencial de cura que a febre representa – mas, ao se fazer isso, estava-se favorecendo a instalação dos elementos alienígenas agressores ao organismo, justamente para elisão dos quais o corpo gerava a febre.
Arruinavam-se, assim, as defesas do corpo, e se supunha, com isso, salvar o paciente.

Eugênia, que brilho excepcional e sábio têm suas palavras… Há algo que gostaria de nos dizer sobre o tema ainda?

Que todos desconfiem dos pseudo-sábios e, principalmente, de todas as doutrinas, ideologias e princípios aparentemente bem elaborados, mas cuja base é sofistica, justamente porque destituída de bom senso, negada pelos melhores princípios de ética, de moral de justiça. Muita gente boa e inteligente, culta e bem intencionada, deixa-se arrastar pelo canto da sereia de idéias “vanguardistas”, mas que, em verdade, reacendem a loucura e delírio, conduzindo seus proponentes e aqueles que os seguem a vidas infelizes de angústia e insatisfação. A perda da paz e da alegria de viver deve ser suficiente sinal de alerta para quem se aventurar por esses terrenos mentais movediços. E quando falamos de paz e felicidade não aludimos ao momento fugidio de excitação e alívio que os viciados de todos os tipos sentem, no instante de atendimento à sua compulsão, mas ao sentimento duradouro e profundo de plenitude e equilíbrio de que aqueles que estão alinhados com Deus e os Fluxos da vida usufruem. Essa sensação é inimitável e é o signo inconfundível dos “eleitos”, conforme a linguagem evangélica: aqueles que elegeram a si mesmos, para seguir os passos da verdade: os passos da vida.

(Diálogo mediúnico travado em 6 de abril de 2003.)