Benjamin Teixeira
pelo espírito Lidiane (*).

Em certa manhã de 1977, estava ministrando aula, quando uma estudante me interrompeu, entre uma tragada e outra do meu finérrimo cigarro perfumado, que naturalmente me forçava a fazer pausas, volta-e-meia, em meio à retórica acadêmica, o que gostava de fazer com certo charme e ar altivo, fazendo tipo de mulher emancipada e madura, dona de minha mente e de minha vida, com o bailado da mão, da fumaça e dos cabelos impecavelmente tratados, bem como do olhar de indiferença sedutora…

– Professora, poderia me dizer alguma coisa sobre sua vida pessoal, como exemplo de nossa temática de hoje?

Em princípio, pensei que se tratava de uma provocação. Mas, depois, pensando bem, vi que a jovem estava sendo altamente espontânea, e queria algo mais próximo da vida real, que ilustrasse nosso tema de estudo. Vou chamar aqui este assunto de reforço “elucidativo”. Em psicologia, chamamos de “reforço positivo”, grosso modo, à tática de estimular comportamentos saudáveis e desejáveis, por meio de elogios a tais condutas. Trata-se de técnica sugestiva, até em certa medida hipnótica, que condiciona a pessoa a sentir-se amada e aceita se agir de determinado modo. Há, porém, situações mais complexas, que nos pedem abordagem mais profunda. Foi o que aconteceu comigo, no início dos anos 60 do século transato.

Participei do movimento de juventude “cabeça aberta”, na já moderníssima capital carioca, que praticava “amor livre”, entre outras licenças típicas da minha geração de revolucionários, nem sempre com causa. Em certos momentos, quase fui presa. Mas não era só psicóloga como estudante, mas também por natureza, e sempre me soube safar do pior em situações críticas.

Foi o que me dei conta naquele dia inesquecível. Vi quando meu amigo, um agitador político conhecido por aqueles dias, já bem chapado numa sessão de baseado que durava há várias horas, foi pego pela polícia e nós, sob efeito daquela nuvem de “fumaça-beleza”, nem nos demos conta inteiramente do que se passava. Meu amigo desapareceu – para sempre. Foi extremamente traumático para todo o nosso grupo de amigos, porque era ele o líder e a referência de todos para praticamente tudo. Só o reencontrei cá, bem depois de haver desencarnado, numa instituição para tratamento de paranóicos políticos. Mas o fato é que na época recebi uma lição muito forte, no que tange ao trabalho com a vanguarda. Nem sempre convém confrontarmos forças constituídas. Mais vale o caminho diplomático, civilizado e consciente de quem apela para a razão e não para táticas de enfrentamento. Meu amigo, tão inteligente e cheio de vida, nunca mais foi visto, enquanto estive encarnada, e nós prosseguimos, fazendo mudanças substanciais, através de falas elucidativas que apresentávamos em sala de aula, como outros de nosso grupo, através de mensagens subliminares na imprensa. E, de fato, terminamos por vencer, como a história de nosso país o atesta.

Claro que é necessário haver mártires, em toda causa justa, mas não são necessariamente eles os que fazem mais pela realização do progresso justo. Amiúde, são aqueles que trabalham em serviços enfadanhos, como o do pesquisador num laboratório ou uma mãe amamentando seu bebê, que preparam grandes saltos de evolução para humanidade, seja descobrindo a cura para uma doença incurável, seja na criação de um grande homem, desde o berço.

O reforço, que seria negativo, naquela situação, e que poderia nos compelir a nos submetermos a um sistema político tirânico, converteu-se em ensinamento importante para os mais lúcidos dentre nós, que compreenderam, tão-somente, que a abordagem do problema estava errada e não o fato de estarmos trabalhando e lutando por um mundo melhor. E, assim, o que era em princípio para ser paralisante e decepcionante, transformou-se no maior incentivo a que eu e meu grupo de amigos não descansássemos enquanto não víssemos o regime ditatorial de governo por terra.

Não vivi no plano físico, lamentavelmente, o suficiente para assistir a todos os efeitos desta longa e penosa luta de uma geração. Mas a lição ficou. Ao final de minha fala sobre a conversão de tragédias em grandes lições, meus alunos estavam boquiabertos e, de certa forma, assustados – ainda vivíamos, embora bem menos que cinco ou dez anos antes, num certo regime de horror surdo, com receio de que “olheiros” do governo nos cassassem liberdades individuais ou mesmo a própria bênção da vida, no meu caso, a começar, inclusive, da graça-ensejo de lecionar. Nada me aconteceu, entrementes… O meu inimigo estava mais próximo: meu cigarro de finos perfumes e o tabagismo atroz que me carcomeu a vitalidade aos poucos, até que o câncer de faringe me roubasse a existência física precocemente. Eu, que soubera enfrentar corajosamente inimigos externos, não soubera facear meus próprios demônios, que, de fato, vieram a me matar: a compulsão e o vício. Era, naquele tempo, elegante e moderno fumar, um ato mesmo de sublevação simbólica, que, inclusive, tinha forte conotação masculina, e algumas mulheres, como eu, fumávamos para demonstrar auto-suficiência e autonomia de opiniões e de conduta. Minha ilusão, filha de uma cultura reativa e histérica, me matou. Que os amigos encarnados que tiverem oportunidade de me ler se precatem de condutas similares, nas versões dos tempos de hoje, que, obviamente, são bem diferentes… mas… talvez… nem tão diferentes…

(Texto recebido em 6 de dezembro de 2005.)


(*1) Lidiane, que usa pseudônimo para não constranger parentes biológicos ainda encarnados, viveu como acadêmica em importante universidade carioca, e riu-se, modesta, quando escrevi o título desta sua mensagem íntima. Agradecidos ficamos por sua humildade e lucidez em partilhar sua experiência conosco.

(Nota do Médium)


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