Benjamin Teixeira
pelo espírito
Gustavo Henrique.

Rodrigo era o jovem filho único de importante família de industriais em São Paulo. Tinha tudo às mãos, mas sentia-se angustiado e triste, sem razão para viver. Crises horrendas de depressão começaram a se esbater sobre o rapaz, fazendo-lhe surgir, à mente, a silhueta sinistra e tentadora do suicídio. Se a vida não lhe parecia ter sentido, por que então prolongar algo sem propósito? Certo dia, movido de estranha sensação de melancolia e saudosismo, resolveu isolar-se no antigo casarão da fazenda que secularmente pertencia à família. Os pais, preocupadíssimos com seu estado emocional deplorável, que nenhum dos melhores psicoterapeutas da capital, nem os melhores psicotrópicos do mundo conseguiam debelar, apressaram-se em concordar e lhe garantir estada longa e despreocupada no interior paulista.

A fazenda de café, donde proviera a fortuna de seus ancestrais, estava magnificamente bem cuidada por gerentes do grupo, mas o casarão mais parecia um museu que uma residência. A mobília impecavelmente limpa, os cômodos invariavelmente vazios…

Rodrigo caminhava e o assoalho rangia, como a remetê-lo a antigos tempos… tempos idos. Lá pelas quase duas horas de passeio pelas dependências e cercanias da sede da fazenda, Rodrigo se deparou com a ala dos retratos de seus antepassados.

Uma jovem, em particular, chamou-lhe a atenção: a majestática figura de sua tia-bisavó, Bernadete, que nascera cem anos antes do seu nascimento e que morrera, curiosa coincidência, com a idade que ele tinha naquele momento. Algo misterioso o propelia para aquele magnífico fio de conexão com o passado… e Rodrigo não mais conseguiu tirar da mente a imagem quase mítica da mais bela jovem que todos que com ela conviveram diziam ter visto e que palidamente se divisava na antiga fotografia de 1901, tirada pouco antes de sua misteriosa morte. Bernadete fora acometida de desconhecida moléstia, definhando até o túmulo, sem causa aparente. Rezava a lenda que havia morrido de dores de amor, ao ser proibida, por seu pai de desposar um forasteiro que surgira por aquelas plagas, pelos idos daquele fatídico 1901.

Impelido por insopitável desejo de espairecer, Rodrigo resolveu dar uma volta em seu moderníssimo Jaguar, resolvendo albergar-se em meio a frondoso bosque de árvores seculares, a pouco mais de dois quilômetros do casario que cercava a mansão: as moradias dos antigos colonos, hoje em sua maior parte desabitadas, com a mecanização do campo que dispensara mais de 4/5 de todo o número de funcionários da fazenda, naqueles últimos 100 anos.

Apeando, após estacionar cuidadosamente seu veículo abaixo de copa especialmente espessa, Rodrigo sentiu-se tragado por irresistível sonolência, recostando-se, assim, numa das frondes mais largas, adormecendo logo em seguida.

Com uma estranha sensação de torpor, e de ter adormecido por muitas horas, Rodrigo desperta, sobressaltado, percebendo que a luz do dia já estava caindo em direção ao crepúsculo. Levanta-se de um salto e procura o carro… Olhou, olhou… e… zás! Que horror: o carro sumira – havia sido roubado…

Ainda não refeito do profundo aborrecimento pelo acontecido, Rodrigo demandou o caminho do casarão… e… tomou fortíssimo susto: não achou a estrada asfaltada que cruzava as partes centrais da fazenda. Foi então que notou, cada vez mais surpreso, que não estava no mesmo bosque. Ao reverso de árvores seculares, Rodrigo se via entre arbustos jovens. No atordoamento em que acordara, não se dera conta de que estava em outro lugar. Certamente levaram-no para longe de casa, após dopá-lo, juntamente com o carro, para que dificultasse o pedido de socorro, dando tempo aos mau-feitores de ocultarem bem seu delito.

De qualquer sorte, Rodrigo, preocupado com a queda da noite, num lugar que não parecia ter luz elétrica, até onde podia perceber, resolveu-se por caminhar, com passo rápido, a ver se encontraria imediatamente alguma habitação ou, quiçá, um conglomerado urbano. Não caminhou muito porém, bem antes que o crepúsculo se findasse, e Rodrigo parou, estarrecido, sentindo-se afundar num universo de sonho ou pesadelo, totalmente desnorteado, confuso e chocado… O jovem mancebo estava, simplesmente, parado, a algumas dezenas de metros, diante do casarão de sua própria fazenda, em meio a luzes de lampião que se acendiam, por negros que ainda pareciam vestidos à moda dos escravos do século XIX.

Com as pernas trêmulas, Rodrigo, arrastando-se, mais do que caminhando, avança em passos lentos, em direção ao casarão. Não podia ser, disparava sua mente, em mil questionamentos por segundo. Era impossível. Já havia lido sobre viagens no tempo, mas nunca deu mais trela ao assunto do que a ficções bem elaboradas por mentes criativas. Sabia da hipótese levantada pela Física Quântica, de isso ser possível, mas também sabia não existir tecnologia suficiente para esse tipo de realização. Por fim, ainda lhe passou pela mente a hipótese de uma regressão espontânea de memória, à moda das que se faziam em gabinetes psicoterápicos de todo o mundo, mas ele se sentia bem acordado para considerar possível essa alternativa.

Foi ainda mergulhado nesse estado de torpor que Rodrigo chegou ao casarão. E ficou ali, parado, de pé, ainda sem acreditar no que via, quando uma figura do Éden surgiu, como se deslizasse em névoa mágica… Era ela: Bernadete Albuquerque, sua tia-bisavó, a mítica mulher mais linda de todos os tempos. Era como se Rodrigo visse uma cena que saltasse diretamente do Olimpo para a realidade… Ela mesma, a moça do antigo retrato da ala dos antepassados. Ela também o percebe e desce as escadarias da entrada do casarão como que tomada do mesmo estupor que ele, e vem em sua direção como que magnetizada por seu olhar. Ambos pareciam se ter por toda a eternidade… de todo o sempre… para todo o sempre. Ela ergue os braços e mãos, em sua direção, com seu rosto de beleza etérea, emoldurado de penumbra, o que mais lhe realçava a mística beleza, quando, instantes antes de suas mãos se tocarem, Rodrigo se vê tragado de volta à sua realidade, recostado na mesma fronde secular, com o Jaguar parado no mesmo ponto onde o deixara, poucas horas antes, ou será que muitos anos depois? O crepúsculo avançava precípite, e Rodrigo cambaleante e obstúpido se dirige ao seu carro, tomando-o em direção ao casarão.

Não podia ser verdade… não era verdade… Ele estava ali. Mas também não podia negar o que vivera com tanto realismo. E eis que, então, começou seriamente a considerar a possibilidade de haver acontecido uma regressão de memória. Teria conhecido ele, realmente, a jovem tia-bisavô, a lendária Bernadete Albuquerque? E que amor infinito, que aluvião de sentimentos ciclópicos foram aqueles que lhe tomaram e que ainda não conseguia alijar do coração? Afinal, o que acontecera entre ele e a jovem Bernadete?

Rodrigo, a essa altura tomado por uma febre de curiosidade irrefreável, acendeu todas as luzes do casarão, mandou devassarem todos os cômodos até que, em certo momento, notou, no sótão, uma porta lacrada. Não havia como abri-la: parecia travada há tanto tempo que a fechadura parecia rija como pedra. Mandou a funcionários que arrombassem-na e, munido de lanterna, adentrou seu interior. Era um quartinho tão diminuto que mal dava para manter-se de pé. Fazendo a volta para olhar em torno, esbarra-se em uma caixa de ferro. Um cadeado antiqüíssimo, que parecia igualmente emperrado, foi, também, por ordem de Rodrigo, quebrado, para que a caixa pudesse ser aberta.

E dentro… qual surpresa… um diário… um diário do início do século anterior, um diário de nada menos que Bernadete Albuquerque. Rodrigo deixou-se cair, ali mesmo, possuído por sede indescritível de devorar as informações. Nem percebeu quando os empregados, atônitos com o comportamento esquisito do patrão lhe pediram licença para sair, até que, com receio de perturbá-lo, retiraram-se por conta própria.

Era ela… E ela conhecera um misterioso forasteiro, que chegara certo dia, há cem anos, ao casarão da família, à hora do Ângelus, ao cair da tarde. Paixão à primeira vista. Mas muito mais acontecera, de que Rodrigo não se lembrava… era ele mesmo? Tudo que acontecia depois daquele encontro de que quase nada revivera. Uma paixão arrebatadora. O horror de Dom Albuquerque, antigo Barão do Império, pela paixão plebéia da filha. A prisão no alto do sótão, pela ousadia de tentar desobedecê-lo e ameaçar fugir. A doença que lhe tomava o corpo debilitado pela tristeza e o prenúncio, lamentavelmente acertado, de sua morte próxima.

Rodrigo estava como que transportado a um mundo diferente. A sua depressão se fora totalmente, mas um estado febril e contraditório de excitação lhe vinha à mente. Bernadete, misteriosamente, sintetizara, para ele, tudo que alguém poderia representar em termos de amor, ideal e estímulo à vida. De modo estranho, a tentação suicida passara, apesar de Rodrigo tanto ansiar por reencontrá-la. Mas uma tristeza mortal começou a se apoderar do coração do jovem Albuquerque. Dia sobre dia passou após aquela noite insone, e Rodrigo mais e mais sentia falta de com quem nunca convivera naquela vida e com quem nunca poderia voltar a privar contato, naquela encarnação.

Mas a Musa estava com ele… ele sentia… sentia… Seria mera fruto de sua imaginação? E ela parecia querer escrever por ele… parecia falar com ele. E Rodrigo entregou-se a estranhíssima compulsão por escrever, dia sobre dia, no velho casarão, substituindo, quase sempre as luzes elétricas por lamparinas da época, de há muitas décadas sem uso.

Estava louco ou delirava, mas sentia Bernadete com ele, e encheu-se de felicidade indizível, e toda sua tristeza foi embora, e todo o vazio da separação desapareceu. Bernadete seguia com ele, segredando-lhe coisas de amor. Estava com ele, e estaria sempre, dizia ela, para que realizassem um lindo trabalho de amor pela humanidade. Haviam sido separados por duas vidas para que o amor infinito que nutriam um pelo outro fosse vertido por toda a humanidade, sem peias, sem fronteiras… A vida sem propósito que sentia, converter-se-ia numa vida cheia de realizações beneméritas em prol de milhares de criaturas. Provavelmente não encontraria amor no sentido afetivo-erótico, já que a lembrança de seu afeto era imorredoura, mas haveria a compensação de ser a fonte de amor para toda uma multidão, sem medidas, no tempo e no espaço… Nascera para isso, era dotado de faculdades psíquicas que o capacitavam para intermediar o mundo dos vivos no plano físico e dos vivos fora dele, e seria um enviado de Deus aos sofredores do mundo, calando suas necessidades para suprir as carências de oceanos de necessitados…

E os dias se passaram, e o pai de Rodrigo, informado pelos funcionários do estado lunático do filho, acorreu à fazenda, encurralando-o em longa e opressiva conversa, convocando-o à ordem, lembrando-o de suas responsabilidades ante o império econômico da família, como único herdeiro de um grupo com mais de 20.000 empregados. Rodrigo abriu o coração ao pai, segredou-lhe tudo que vivera e sentira, mas nem de longe encontrou compreensão para sua situação…

Numa bela manhã de inverno, com os termômetros perto do o°C, Rodrigo, após outra noite insone, com o olhar denunciando a alma assassinada por mil vaticínios sombrios, avançou para o lado de fora do casarão e se dirigiu ao jazigo da família. O vento frio da manhã parecia soprar, sinistro, e Rodrigo se postou ante a lápide de Bernadete, o amor incomparável e divino que o arrebatara para um mundo de sonho e felicidade, tormento e vida, além da morte…

Fitando seu nome inscrito em pedra, Rodrigo chorou copiosamente, ajoelhando-se no chão e curvando sua fronde na direção da terra. Não seria possível… lamentava-se com a dor mais cortante que jamais supusera possível um ser humano sentir. Não seria possível seguir o convite de seu grande amor a viver uma história de amor além da morte, e levantar os verdadeiros mortos no desespero, na dor e do vazio, para a vida da felicidade, da fé na imortalidade, da certeza do reencontro com os entes amados, da ventura ímpar de ser amparado e amado por afetos da outra dimensão, afetos eternos.

Em meio a choro convulso… porém, Rodrigo sentiu uma reaproximação de sua Diva, no seio de seu coração, no reduto mais íntimo de sua alma, a lhe falar da necessidade de refletir e ousar, de não se intimidar pelas adversidades do plano físico, de não desistir jamais do próprio sonho… Deveria resistir e tentar seguir a voz da consciência, do ideal, da intuição, a que custo fosse… ou a maior de todas as desgraças: a frustração e o remorso, o vazio e a infelicidade vir-lhe-iam como pesado tributo pelo seu descaso com o essencial…

Mas Rodrigo era jovem demais… bonito demais… rico demais para conseguir sair da teia de tentações em que estava envolvido… E chorava, chorava com uma dor do tamanho do mundo, naqueles momentos críticos, divisores de águas em seu destino.

Não saberia precisar por quanto tempo estivera ali, mas o fato é que, em certo instante, esgotado pelas lágrimas intensas e intermináveis, Rodrigo se levantou, enxugando o rosto e dizendo para si que, ao menos, nunca mais pensaria em suicídio… a vida era preciosa demais para ser desperdiçada com nada… Quanto ao projeto de amor pela multidão, porém… lamentava, não seria possível, realmente não seria…

Um vento mais forte tomou o lugar, quando Rodrigo se levantou, com as pernas ainda claudicantes. Um vulto seráfico de mulher o acompanhava de perto, por detrás, com vestes evanescentes e translúcidas, também em lágrimas, olhos divinais voltados para o céu, em prece ardente…

A ventania uivava plangente, como se o cosmo chorasse por todas as lágrimas que não seriam secadas pelo trabalho de amor pelas multidões que não seria realizado… e de tal forma o vento soprou, que folhas ressequidas foram completamente varridas da base da lápide, deixando à mostra uma frase profética, por talvez ninguém nunca lida e, certamente, por ninguém jamais entendida, que o jovem anjo Bernadete pedira para se apor em sua lápide como epitáfio:

Um dia, quem sabe, talvez…

* * * * * * * * *

A vida física é passageira, prezado(a) leitor(a). Se não nos atentamos, as Bernadetes passam por nossas existências e nem nos damos conta disso. Somos, todos, um pouco Rodrigos. Somos, todos, um pouco displicentes quanto ao essencial. Somos, todos, potenciais fracassos espirituais e devemos estar sempre alerta para não nos deixar arrastar para o abismo da frustração maior de todas: a da perda de toda uma encarnação, num sério descaminho evolutivo.

Mas podemos moderar o coeficiente do padrão de descaso com o essencial que habita em nosso mundo interior. Ou nos tornaremos plenos Rodrigos, como muitos existem no plano físico, passando pela vida como tormentos ambulantes, às vezes em meio a gargalhadas histéricas, que lhes abafam o choro convulso que trazem no âmago mais profundo de suas almas destroçadas…

(Texto recebido em 7 de novembro de 2001.)