(Um espírito amigo meu, que me pediu anonimato, por haver gente encarnada em seu relato, assim lhes preservando a privacidade, solicitou que partilhasse, de algum modo, sua história, a fim de que outras se beneficiassem um pouco com sua experiência, dessarte inspirando almas sofridas a suportarem e atravessarem crises graves. Segue-se, então.)

Fui largado sozinho em casa, quando bebê e criança, alijado de passeios familiares, sem a companhia de babás e sem ser dopado, como alguns pais e mães pobres o fazem, quando não têm com quem deixar seus filhos para trabalhar. Os meus pais biológicos, porém, eram instruídos e de classe média. Ao acordar, sentindo-me no silêncio e no escuro da casa deserta, um estado de pavor indescritível me tomava. Todavia, procurei sobreviver, e, com o tempo desenvolvi um grau especial de autossuficiência no afeto.

Sofri grave infecção na região da faringe e laringe, que me gerou terrível inflamação da glote, quase me sufocando, introduzindo-me numa aflição medonha, mas me foi negado socorro hospitalar, quando contava pouco mais que 5 anos de idade. No entanto, aprendi a atravessar situações desesperadoras, sem o auxílio de outras pessoas, ainda que as procurasse.

Fui perseguido por causa da “letra feminina”, nos deveres de casa, por minha mãe, e ouvia, aos gritos, de meu pai, que deveria “falar como homem”, ainda no final da infância. Como consequência, perdi o gosto pela instrução formal, porque não tinha noção de quem eu era, até na caligrafia ou na forma de me expressar verbalmente. Contudo, graças a essas sistemáticas e absurdas acusações, busquei formas alternativas de me educar e amadurecer, quanto a pensar mais antes de falar, não para a voz parecer mais ou menos masculina, e sim no esforço de o que eu dissesse fosse mais ponderado e útil. Com o tempo, criei uma invulgar autonomia em relação ao que pensavam ou julgavam a meu respeito. Passou a me importar com grande prevalência sobre a expectativa de terceiros, que eu estivesse falando e agindo de acordo com quem eu realmente era, com aquilo em que de fato empenhava minhas convicções.

Queria brincar com minhas irmãs, mas era proibido. Era lançado para a rua, o “lugar de homem”, e ia, então, para a casa de avós ou tias, e era mandado de volta para casa, debaixo de invocação de pragas, proferidas de modo dramático, ao telefone, pela própria mãe biológica, porque fora buscar outras figuras maternais na família. Com isso, entrementes, desenvolvi ternura e afeto por minhas irmãs, cuidando delas, como me era possível, ajudando duas delas em crises de asma (às vezes sob ameaça materna, que me impedia de buscar auxílio médico), ouvindo seus desabafos e orientando-as, quanto me era possível, ou auxiliando-as a se encontrarem com namoradinhos, quando eu não tinha nenhuma esperança de me realizar afetivamente, numa época de intraduzível homofobia. Aprendi a amar e a viver pela felicidade de outras pessoas, por julgar que nunca poderia ser feliz por mim mesmo.

Fui espancado em casa, por minha mãe, algumas vezes até verter sangue, por dar sinais de minha homossexualidade, tratado como vergonha e aberração, na escola e na igreja. Apesar de me sentir em frangalhos emocionalmente, acabei por me voltar para o Amor da Mãe do Céu, a Figura de Maria Santíssima, que poderia me perdoar, por ser diferente, presumindo que ao menos Ela não teria ânsias de me lançar no fogo eterno do inferno. Sentia-me, assim, embora com dificuldade, amado, por misericórdia e não por merecimento, por uma Mãe SemiDivina, ainda que invisível, ainda que coletiva. Até que uma Mãe Espiritual surgiu, ao final de minha adolescência, com o florescimento mais amplo das percepções mediúnicas, tornando minha existência, a partir de então, paulatinamente melhor.

Meu pai por duas vezes tentou quebrar cadeiras pesadas de madeira sobre minhas costas, por ousar ter opiniões diferentes às dele e, claro, por ser gay, até que saí de casa, após o último episódio de tentativa de me aleijar ou me matar. Todavia, fomentou-me mais intensamente o impulso de me tornar, como registrei acima, mais maduro e independente da opinião de terceiros, para dizer ou fazer o que eu realmente julgava ser certo, o que minha consciência ditasse. Houvera enfrentado o pior dentro de casa, nos verdes anos. As dificuldades do mundo seriam nonadas.

Houve inúmeros outros episódios sombrios de abusos, no correr dos anos, que me marcaram indelevelmente, mas que não seria construtivo aqui minudenciar. Quando saí de casa, meus pais não me telefonavam para saber como estava, não me visitavam, semana sobre semana, mês sobre mês, ano sobre ano. Ou eu os procurava, ou não havia contato algum. Isso era o esperável. Eu era o desgosto e a vergonha da família! Nunca houve afeto: só repulsa e ataque contínuo a quem eu era, a ponto de acompanhar minhas irmãs receberem manifestações de afeto durante toda a infância, e, para mim, o berro incompreensível e frequente, se tomasse a iniciativa de abraçar ou beijar minha mãe: “Vá buscar mulher na rua!”.

A solução inconsciente, que noto haver sido por inspiração piedosa do Céu: fiz-me a fonte de amizade e ajuda, afeto e cuidado, para minhas irmãs primeiramente, para pessoas fora da parentela biológica depois; e, por fim, para a pequena comunidade a que passei a servir. Tive que gerar minha própria fonte de suprimento de amor, dando o amor que não recebia. E o Socorro Divino, misericordiosamente, veio em minha direção.

Já adulto, tive conversas sérias com os dois genitores, que foram, como esperado, mal aproveitadas. A mãe biológica assumiu algumas culpas, mas em tom irônico. O pai biológico, que fugia de assumir qualquer responsabilidade, depois de me ver exitoso profissionalmente, tentava se desculpar, dizendo que não tinha como antever que eu seria bem sucedido. Como? Se até minha a busca pela religião, como conforto para fugir a tentações suicidas, foi tratada como “algo tão grave como toxicomania”?

Não desejo mal a eles. Quero que se encontrem e sejam felizes. As lembranças machucam, volta e meia, intensamente. Entretanto, cresci no processo e me tornei uma pessoa realizada. E, embora o contato seja dificultado, para não dizer de todo impossível (na maior parte do tempo), ganhei uma família do Espírito, por Graça da Divina Providência, irmãos(ãs) em Ideal, amigos(as) autênticos(as), porque têm comigo afinidades profundas de ideias e sentimentos, porque me querem bem sinceramente, aceitam-me como sou e se sentem felizes com o serviço de consolação e esclarecimento que presto a eles(elas).

Havia, como disse acima, desesperado de ser feliz e decidido, na adolescência, trocar a desistência de viver por viver para fazer a felicidade de outras pessoas. E o tempo me mostrou a realidade dramática ínsita na Mensagem de Jesus: “Aquele que abandonar pai, mãe, irmãos, irmãs, posses, em Meu Nome (em Nome do Amor, que é Deus), receberá cem vezes mais nesta vida, com perseguições (os conflitos naturais de decisão tão difícil), e, na outra vida, a vida eterna”!…

Não caiamos na tentação da revolta e do desespero, do derrotismo, do impulso de revide, do complexo de vítima, por termos sido realmente vitimados(as) – isso é conceder poder aos(às) agressores(as) de nos fazerem um mal mais prolongado e profundo do que já sofremos!

Jamais descreiamos do Bem e de Deus! Não justifiquemos nossos problemas com o que tenhamos padecido, ainda que na infância! Isso não é prático, não é justo com nós mesmos(as), porquanto perpetuamos o mal que nos fizeram, e, definitivamente, não constitui uma atitude psicológica, cristã ou espiritualmente correta.

Ademais, reconheçamos que também somos seres falíveis e limitados(as) e que igualmente carecemos de perdão pelos nossos pecados, diante dos Tribunais da Justiça Divina, que nunca erra!… A indulgência que concedemos e a conversão da mágoa e do ódio em foco no bem libertam-nos das algemas de terror com o passado, configurando-nos não somente uma rota de sobrevivência, mas, outrossim, uma estrada mística para a transcendência!

Então, amigo(a), seja qual for a situação que você viva, por mais desesperadora e angustiante que pareça ou de fato seja, confie irrestritamente na Infinita Bondade de Deus, foque sua consciência no coração e faça seu melhor pelo seu semelhante, lembrando-se da Mensagem Cristã fundamental, idêntica à de todas as tradições espirituais sérias: o amor é a única saída, e uma saída que adquire múltiplas formas de manifestação, dolorosas amiúde (como a decisão do afastamento de entes queridos que perpetuem atitudes abusivas), mas sempre construtivas e salvadoras, em seus efeitos…

Amor por Deus e Seus(Suas) Representantes Espirituais, amor por um Ideal ou uma vocação, amor por nossos semelhantes em humanidade, amor pela natureza e por animaizinhos, amor por nós mesmos(as)… Amor sempre!

Benjamin Teixeira de Aguiar por um Espírito Anônimo
New Fairfield, Connecticut, EUA
5 de março de 2019