por Benjamin Teixeira.

O dia amanhece. São cinco e trinta da manhã. Ainda não fui dormir. Li um pouco, ouvi Eugênia durante uma hora, mas, no momento de tentar conciliar o sono… “meu coração” pediu que partilhasse essa experiência com meus amigos condiscípulos em ideal, que acessam este endereço eletrônico e gentilmente me lêem.

O Cosmo nos uniu. Encontramo-nos de forma totalmente improvável e, chegando em casa, resolvi “bater o telefone” para o amigo que encontrara:

– Fulano, acho que o Cosmo nos uniu para conversarmos. Você me daria cinco minutos? – era meia-noite, mas meu amigo (ou ex-amigo) anuiu imediatamente, cordato.

– Não sei o que vim dizer, Fulano – disse, logo que ele se sentou no banco passageiro – Mas queria começar por lhe dizer que… lhe quero muito bem.

Meu interlocutor deu um sorriso sem graça (creio que não tenha percebido quanto) e disse-me que era recíproco. Para não constrangê-lo com o meu olhar, disse que poderíamos conversar enquanto eu dirigia, em vez de pararmos em algum lugar, irmos ao meu consultório ou minha casa. E parece que ele realmente ficou à vontade: disparou a falar quase sem respirar. Quando conseguia observá-lo rapidamente, entre uma manobra ou outra ao volante, via-o com todo o rosto congestionado, mãos em movimento enfático, “possuído” por seu discurso. Elaborava pensamentos, argumentava e logo em seguida contra-argumentava consigo mesmo. Era um solilóquio curioso, com um expectador: eu. O máximo que conseguia dizer era um vago “Um-hum!”, ou: “Pois é, Fulano…”, “Com certeza, Fulano”. Dividia minha concentração entre suas palavras e pedidos íntimos de ajuda aos orientadores espirituais, a fim de que aproveitasse corretamente o momento, e, assim, quem sabe (?) “quebrasse o gelo” do coração tão querido de antanho. A um observador mais distraído talvez meu ex-amigo desse a impressão de estar querendo me impressionar com sua lábia bem polida ou com os conceitos que apresentava, assim como o discípulo aplicado quer impressionar o professor, para subir-lhe no conceito, mas, sinceramente, creio que não era isso que acontecia. Honestamente acredito que meu ex-amigo, que provavelmente não lê mais este site (segundo ele mesmo deu a entender em nossa curta palestra), o que me deixa à vontade para escrever isso por aqui, estava tentando se convencer do quanto estava no controle da situação, o quanto compreendia tão bem tudo que sucedera, o quanto era sábio e lúcido, o quanto não errara em momento algum, embora, polidamente, tenha reconhecido portar defeitos e limitações diversos. A projeção psicológica de seu estado íntimo em mim era tão forte, sem que ele se desse conta dela, que me disse um: “Não se preocupe quanto a mim, Benjamin”. Ao que respondi: “Só o procurei por acreditar que estaria apto a ouvir-me e não para checar-lhe o estado de ânimo.” E ele sorriu sem graça de novo – creio que por não haver acreditado: deve ter suposto que fui apenas polido, como estava sendo comigo.

Não estava sendo educado: estava sendo sincero. Fui falar com ele como um coração e encontrei um cérebro. Ele não percebeu isso, é claro. Devo ter parecido enigmático ou talvez patético para sua perspectiva, mas o fato é que apenas não forçava a conversava: deixava que fluísse conforme o momento, que se fez o momento do ego aflito de meu amigo-ou-ex-amigo.

Não estava numa disputa: não sei se ele notou isso, mas creio que tenha sido inevitável, porque, por pelo menos duas vezes, a conversa foi pontuada por silêncios, que eu cobria com um: “Pois é, Fulano!”, imprimindo emoção, novamente, na voz e tocando seu joelho, fitando rapidamente (estava ao volante, não se esqueça) seus olhos, para dizer: “Vim aqui só para lhe diz que lhe quero muito bem mesmo!”. E, então, o dito Fulano, após sussurrar sem emoção que também me queria bem, voltava a disparar sua metralhadora de idéias…

No final das contas… como diriam os cariocas, ele não “sacou”. Era para ele parar de pensar por um momento, de se justificar ou dar a entender que, generosamente, me perdoara (céus!)… e apenas sentir… A vida não existe sem sentimentos… Não há verdade, inteligência ou criatividade, onde não há amor…

Deixei-o tão à vontade que, quando terminávamos a grande volta que demos na orla da capital sergipana, e já me dirigindo para a casa dele, fez-se um pesado silêncio no carro e ele disse:

– Puxa, Benjamin, você me pediu para falar e eu falei o tempo inteiro!

– É, Fulano… Mas não faz mal… Voltaremos um dia a falar sobre tudo isso novamente. Quando estivermos desencarnados, as coisas ficarão esclarecidas. Não podemos forçar conversas. Por ora, somos todos limitados demais para cobrir o panorama inteiro com nossas vistas.

Pedi desculpas por eventualmente havê-lo magoado, no cumprimento do meu dever (não posso ver pessoas, quando o interesse coletivo está em jogo – ele não pôde compreender isso). Mas não disse dessa forma: apenas pedi desculpas por havê-lo magoado. Ao que ele, com ar misericordioso e superior, disse que não tinha de quê perdoar, apesar de me ter deixado sem respostas por meses… Não sei, a essa altura de protegê-lo de seu próprio ego, se foi correto eu ter ocultado dele tanta informação assim. Não pude falar que tive razões sérias e fui orientado pelos espíritos do Plano Maior, nas minudências menores de todas as providências tomadas, nem dizer-lhe o quanto sentia que, apesar de ter agido como deveria, na desincumbência de minhas responsabilidades, tinha ferido involuntariamente corações queridos.

A vaidade humana não permite, porém, que se veja o si mesmo como menos que especial… Ninguém houvera se dado conta do delírio de um conjunto pequeno de pessoas se ter colocado acima dos interesses de todo um projeto que abarca milhões de pessoas, somente hoje. E… assim, despedi-me do amigo com um sorriso sem graça (agora eu é quem estava com um sorriso sem graça.)

Não adianta “forçar a barra” de uma intimidade e de uma naturalidade perdidas, nas brumas do tempo. Enquanto os nossos companheiros de caminhada não amadurecerem o suficiente para nos compreender os intentos, taxar-nos-ão de loucos, irresponsáveis ou pervertidos. De nada importa também tentar convencê-los de que estamos certos ou de que, ao menos, nossas intenções eram as melhores. Pior ainda: se estamos à frente, em termos de experiência, desenvolvimento ou maturidade, no carreiro evolutivo em suma, mas nosso interlocutor, por razões egóicas, prefere renunciar ao bom senso a reconhecer isso, muito menos ainda vai adiantar que tentemos persuadi-lo ou dissuadi-lo do que quer que seja: isso seria darmos uma prova de estarmos no mesmo nível egóico de consciência.

É de muito bom alvitre que lembremos que as amizades vêm e vão. Que os relacionamentos existem para cumprir certos papéis em nossas vidas; e que, feito o aprendizado, naturalmente se desfazem os vínculos que nos jungiam a tais pessoas, a não ser que pretendamos “remar contra a maré” da Vontade Divina e, assim, sofrermos reveses continuados e progressivos, até que nossa teimosia seja domada, por força de eventos suficientemente dolorosos e traumáticos para que corramos léguas dos tais indivíduos em foco. Isso se dá da mesma forma como o aluno relapso que, após repetir uma certa série do curso um tal número excessivo de vezes, é expulso do educandário, para que não haja prejuízo demais à instituição.

Desapeguemo-nos de pessoas, sejam amigos, cônjuges, familiares, mentores ou pupilos. Ninguém nos pertence. Se sofremos porque “perdemos” alguém, isso indica nosso equívoco quanto à nossa conexão com relacionamentos interpessoais, que são circunstanciais e não constitutivos da nossa natureza. Nossos amores não são partes de nós ou apêndices de nossa personalidade: constituem dádivas do Céu, que devemos usufruir enquanto os temos por perto (física ou psicologicamente – há quem esteja física, mas não emocionalmente próximo). Desesperar porque se perdeu um amigo, um cônjuge ou um filho, por mais caro, nobre e elevado tenha sido ou suponhamos tenha sido nosso sentimento, revela, amiúde, mais revolta, decorrente de nossa ignorância e prepotência, do que propriamente da profundidade e extensão de nossos sentimentos. Quem briga contra o destino age como a criança que quer controlar os pais, fazendo birra, ou como o fanático que quer controlar Deus, agindo com ira e arrogância.

Quem ama realmente não só libera o ente amado, para seguir rumos diversos do seu, como ainda deseja que isso aconteça, quando não é possível, para ele, ser feliz ao seu lado. Isso digo sem o menor receio de estar pecando por excessivo idealismo: conheço vários casos, inclusive alguns muito próximos a mim, de pessoas que agiram exatamente dessa forma. Aliás, o que pode soar, em primeiro exame, a fenômeno raro, pouco crível ou mesmo impossível de ocorrer, pode ser corriqueiro e apenas dele não nos apercebemos, pelo fato já conhecido de que a verdadeira virtude não gosta de tocar trombetas diante de si. A mãe, por exemplo, que fica feliz, por enviar um filho ao exterior, para concluir os estudos ou mesmo para morar por lá, não estaria agindo dessa maneira? O pai que renuncia ao convívio cotidiano com a filha amada, para que ela possa desposar seu marido e constituir família também não estaria agindo assim?

Deus não dá e tira depois, como se diz no vernáculo. Deus dá sempre. Só que, frenqüentemente, em vez de agradecerem pelo que recebem (a graça de conviver com alguém um tal número de anos) as pessoas costumam cobrar o que nunca foi delas (a propriedade sobre o vínculo com alguém). Cuidemos para que não nos convertamos em palhaços de auto-piedade, fazendo da auto-comiseração uma fonte de mórbido prazer dramático, sendo deplorados por muitos que nos perceberão a atitude infantil ante o inexorável, como a perda de um ente querido.

Pensemos nisso e apliquemos a nossas vidas, para que soframos menos e, principalmente, para que valorizemos o que temos de mais sagrado: as pessoas amadas ao nosso lado, enquanto estão ao nosso lado, para que, de futuro, não venhamos a lamentar, amargamente, havermos desprezado grandes amores perto de nós, por lastimar a ausência dos distanciados, por força da Vida, talvez justamente por não terem sido os amigos que supúnhamos fossem.

(Texto redigido em 20 de abril de 2004.)