por Benjamin Teixeira


Estava já há uma hora em prece, quando experimentei um estado alterado de consciência mais aprofundado, que se cambiou para uma regressão espontânea de memória. Vi-me bebê mais uma vez, na antiga casa do bairro Santo Antônio (*), onde meus pais e eu residíamos, até meus dois anos e dois meses de idade (sou o primogênito, minhas três irmãs ainda não haviam nascido). Deitado no berço, olhando para o teto, grunhindo fonemas sem sentido, feliz por estar acordado e vivo! Não havia valores ou qualquer parâmetro de discernimento, que definissem algo como bom ou mau, certo ou errado, bonito ou feio. Nenhum preconceito, nenhum elemento discriminatório… As coisas, pessoas e eventos simplesmente eram…

Saí da oração-meditada enxergando o mundo de um modo um pouco diferente. Que diferença há entre conceituar, filosofar, intuir e, tão-somente: sentir! Sentir não é especular ou conjecturar: sentir é viver, é ser… Só o coração transforma, em meio a todo caos e aparentes inconsistências da vida, revelando significado, sentido e propósito para tudo.

Na Psicologia Profunda, o arquétipo da Criança Interior – ou “Puer” – conduz ao da Totalidade – ou Self. O bebê interior contém o anjo latente em nossa intimidade. Somente quando nos permitimos nos vulnerabilizar, para sentir toda a fragilidade e ignorância que portamos, podemos estar receptivos e sintonizáveis com os padrões superiores do Espírito, que ainda não nos compõem o modo de ser.

Terminando o culto do Evangelho, que se realiza diariamente, em meu apartamento, após o almoço – desta vez, só eu e o amigo revisor destas páginas (pela sobrecarga além da habitual, que me premiu a suspender a hora da refeição com mais amigos) –, sentei-me a digitar estas rápidas linhas, por sugestão dos sábios orientadores desencarnados, e recordei-me de uma correspondência eletrônica que troquei nesta madrugada, com outro amigo, freqüentador de nossas palestras há vários anos. Enviou-me, após um e-mail afetuoso, a seguinte citação:

“É bom ter certa dificuldade em viver e não encontrar um caminho todo plano. Tenho pena dos reis, se lhes basta desejar; e os deuses, se em algum lugar existem, devem ser um pouco neurastênicos.”
Émile-Auguste Chartier

Sem dúvida, devemos desistir, definitivamente, de agir como reis ou deuses (mesmo em nossa própria vida), como a cultura racional e pragmática do Ocidente tanto nos propele a tentar fazer, ou jamais estaremos aptos a elevar o grau de nossa lucidez ao nível de, realmente, passarmos a regentes ou divindades em gérmen, na gerência do próprio destino – condição esta que estamos todos fadados a alcançar, pelo longo trajeto evolucional que começa, inexoravelmente, com o reconhecimento da pequenez e insignificância que nos são peculiares.

Ao e-mail do amigo, respondi:

Sem dúvida! Viva à incerteza, à ambigüidade, à complexidade, à imprevisibilidade! E, em contrapartida: salve a criatividade, a liberdade, o poder de transformar e se transformar, começar e recomeçar, construir, desconstruir e reconstruir!!! Em suma: viva à humanidade!!!!

(Texto redigido em 11 de julho de 2007. Revisão de Delano Mothé.)

(*) Ponto d’onde surgiu Aracaju, minha cidade natal, capital de Sergipe, em 1855, a segunda cidade projetada do mundo (depois de Berlim).
(Nota do Autor)