por Benjamin Teixeira

20 anos atrás… Era 7:25 h de 29 de outubro de 1984. Mamãe batia à porta do meu quarto, insistentemente, tentando acordar-me.

– Benjaminzinho – disse-me, ato contínuo ao eu abrir a porta – o seu Floca está morrendo.

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Em princípio eu detestara aquele apelido, na verdade uma corruptela do nome que eu dera ao meu coelhinho de estimação, criada por uma das funcionárias de nossa casa. O nome original havia sido “Ploc”. Mas o fato é que, inconscientemente, adorei o tal do “Floca”, talvez porque soasse mais transcendente, menos associado a definições sexuais ou culturais (havia uma marca de chicletes, à época, com esse nome), e, assim, “Floca” acabou sendo o nome que eu mesmo incorporei para chamar meu anjinho de pelo.

Floca era um coelhinho daqueles branquinhos de olhos vermelhos. Era a alegria de minha chegada em casa, do Colégio: vê-lo correndo em minha direção. Orgulhava-me de parecer ele tão inteligente como um cão doméstico. No ápice da minha adolescência, por um hábil mecanismo de defesa psicológica (assim interpreto hoje), Floca era o “único” ser que eu amava verdadeiramente.

Corri para vê-lo, respirando com dificuldade, com os olhinhos dantes rubros escurecidos, arroxeados. Alisei-o com carinho infinito, como se fizesse ao coração de alguém, ele não reagia: estertorava. Queria prolongar-lhe a vida, tocando-o com cuidado, para não doer-lhe mais os órgãos lacerados, embora não houvesse sangramento externo, mas dava para perceber que seria em vão. Floca havia sido atropelado por mamãe, dirigindo o carro, na saída de casa, quando levava minhas irmãzinhas para a escola.

Esperei que ele desse o último hausto, e corri para meu quarto, trancando-me, e chorando, copiosamente, por longuíssimos (para mim, na época) 15 minutos, sem parar. Floca, o “único ser que eu amava”, havia partido. O mundo voltara a ser árido como antes.

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Com a morte de Floca, comecei a chamar todas as pessoas que queria bem de “Floca” e de “Floquinha”, alcunha que só dava a minhas três irmãs e minha mãe e uma ou outra colega (homens não poderiam merecer um diminutivo desta natureza, pelas razões culturais que nós brasileiros conhecemos, sobretudo partindo de outro homem). Até que, após um tempo curto que não sei precisar, só minha mãe recebia esse chamado, como até hoje preservo. “Floquinha”, como meus amigos íntimos sabem, é a forma carinhosa e habitual com que trato minha mãe, de tal como que, quando ela me ouve dizer um “mamãe”, sabe que estou “terrivelmente grosseiro” e mal-humorado, que estou muito aborrecido com ela e/ou que o assunto que vou abordar é sério e urgente.

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Duas décadas se passaram… e Floca, vejo agora, foi um elemento ativador, utilizado pela Divina Providência, para meu afeto provisoriamente retraído da adolescência. Meu id (*1) e talvez até meu Self (*2) estivessem, de modo rústico porém, projetados na figura daquele serzinho puro e simples. Eis porque, talvez, o trauma de sua morte violenta e inesperada tenha sido relativamente forte.

Hoje, compreendo que é mais fácil amar bichos ou anjos (com quem não convivemos), porque eles não nos contrariam os interesses, estão sempre disponíveis a amar e ser amados e não divergem de nossos pontos de vista. Todavia, como descobri depois da partida de meu Floquinha, há Flocas ocultos em todas as pessoas, e, por isso, aprendi a amá-los, apesar dos aspectos medonhos humanos, que todos temos. Até que, um dia, até em mim mesmo, aprendi a amar o lado puro e virginal da criança inocente, que há em toda criatura, desde que seja descoberto e despertado corretamente.

Você tem um Floca dentro de si, e os seus amigos, familiares e colegas também. Estamos muito focados no lado pior uns dos outros. É hora de sermos um pouquinho mais espertos e enxergar o lado bom, puro e sincero que cada um tem, em percentual e em conformação singulares. Chegou a hora de vermos o bebê, o anjo ou bichinho inocente que há em cada irmão nosso em humanidade, para que, gradativamente, sem perdermos a lucidez e até a malícia (que faz parte da lucidez) possamos ingressar, efetivamente, na angelitude, nível evolutivo em que há pureza e doçura, sem demência ou idiotia.

(Texto redigido em 28 de outubro de 2004.)


(*1) Na nomenclatura freudiana, a faixa mental primitiva-instintual do ser humano.

(*2) Em terminologia junguiana, o arquétipo da totalidade, o ser essencial, a identidade mais nobre, elevada e completa, no centro da própria personalidade, normalmente em estado de “bolota psíquica”, digamos assim.

(Notas do Autor).