Benjamin Teixeira pelo espírito Gustavo Henrique.

Era uma vez uma águia sobranceira que pairava bem alto, acima de todas as aves, acima de todos os bichos da Terra. Sentia-se poderosa e única. Nenhum bicho de todos os campos e florestas tinham uma visão como a sua, capaz de detectar o focinho de um coelho, na abertura ínfima de uma toca, a centenas de metros de altura, e descer certeira, num golpe fatal sobre a presa. Nenhum bicho tinha a argúcia, a perspicácia, a habilidade da águia, e, assim, vivia feliz… ou pelo menos assim achava que seguia feliz.

Com o tempo, porém, a águia começou a se sentir estranha, vazia naquelas imensidões do céu, começou a perceber que sentia solidão…

Eis então que a águia, que percebia que todos a temiam, e que tinha o que quisesse, na hora que bem lhe aprouvesse, não tinha o essencial: a alegria e a satisfação de amar e ser amada, não era feliz… e, com isso, não tinha nada… ou tudo que tinha era pior que ter nada, porque era o poder que detinha que a afastava de todos os outros bichos.

Arrasada com sua situação, sentindo-se impotente e vil em ser o que era, a águia voou até o alto da montanha, e voou ainda mais alto, em busca de encontrar alturas tais em que perdesse o fôlego, com a falta de ar, desmaiasse, e despencasse direto para o abismo da morte. Nada havia que lhe agradasse, que fizesse sentido, se fosse condenada a ser sempre temida, mas nunca amada; a estar nas alturas, mas sempre sozinha; a ser o bicho mais capaz, mas de quem todos corriam espavoridos…

Alçou vôo, assim, cada vez mais alto, fitando o sol, pedindo-lhe, sem palavras, que a consumisse em seu fogo ardente. Quando, de repente, os raios do sol começaram a dançar diferente em suas retinas cansadas… Seria o efeito da altura, do pouco oxigênio, que a confundia? Seria o efeito da intensa radiação solar, que lhe atrapalhava os sentidos? – perguntou a si mesma a águia arguta. De qualquer forma, a despeito de seu cepticismo e seu crivo impiedoso de análise, os raios de luz, para sua surpresa, tomaram a forma de um belíssimo anjo, de olhar infinitamente terno e doce, que veio em sua direção, rapidamente.

A águia sentiu um repente de felicidade… Seria o anjo da morte, certamente… e que olhar doce… Por que não teria feito isso antes? Nunca havia se sentido tão amada em toda sua vida! Era isso que ela buscava. Mas o anjo, ao reverso de lhe confirmar as especulações íntimas, aproximou-se dela e lhe disse, na linguagem inarticulada do pensamento e do coração:

– Não sou o Anjo da Morte, mas sim o Anjo da Felicidade. Por que pensa que a morte é a solução para seus problemas? A vida não é um problema: é a fonte de todas as soluções. Volte, e faça o que sabe que tem de fazer: amar, relacionar-se, servir, ser amada… Não espere situações ideais, nem espere que venham a seu encontro – busque todos os seres da criação e lhes dê o seu contributo ao seu bem estar e à sua paz. E, ainda que não receba retribuição alguma, o simples gesto de bondade já aquecerá e nutrirá seu coração.

A águia estava profundamente emocionada. E, paralisada de êxtase e gratidão, pela honra e a misericórida de visita tão ilustre, resolveu de imediato atendê-la. Fez, assim, meia volta no seu vôo vertical e desceu em direção aos campos que estavam tão distantes abaixo de seus pés, e desceu de novo em direção à vida…

Depois disso, a águia fez muitas tentativas de integrar-se aos bichos da Natureza, sempre encontrando medo, fuga e desconfiança. Por muitas vezes, pensou em desistir, mas, nesses momentos difíceis, em que ninguém a compreendia, em que ninguém lhe intuía o interior renovado, recordava-se do Anjo que lhe aparecera, o Anjo da Felicidade, e recobrava as forças para prosseguir.

Até que, um dia, um coelhinho insignificante das grandes extensões de campo que sobrevoava, deu-lhe um voto de crédito, mesmo sabendo que punha sua vida em risco. E eis que todos, a partir daquele dia, puderam contemplar a cena esdrúxula de um coelhinho sobrevoando as imensidões dos campos, nas garras de uma águia que, entretanto, em vez de lhes trespassarem os orgãozinhos frágeis, carregavam-no com firmeza e segurança, para paragens com mais relva para sua alimentação.

E, assim, em pouco tempo, todos entenderam que a águia estava transformada, e, pela sua especial capacidade de sobrevoar grandes áreas e divisar-lhes os menores movimentos, acabou por receber a delegação, de todos os bichos daqueles páramos, para ser a atalaia de todos, uma guia para se protegerem dos predadores, que eram denunciados sempre que entravam no terreno de seus amigos pela águia vigilante.

E, dessa forma, aquela que foi tão temida e odiada, era agora amada e cuidada por todos. Bichos de toda parte juntavam minhocas e diversas guloseimas apetitosas para a águia, enquanto ela trabalhava nas alturas, para que não passasse fome, em sua natureza carnívora. Mas ninguém mais, realmente, a temia.

A águia poderosa, enfim, descobrira a felicidade. Descobrira que o poder não era a sua felicidade, mas que poderia ser sua maior desgraça se não fosse posto a serviço de todos. Aprendera que só existe felicidade na solidariedade, na fraternidade, no amor. Descobrira que nascera para amar e ser amada, e, assim, ser muito, muito feliz…

A águia somos todos nós, confiantes, excessivamente, em nosso poder pessoal, capacidades, dinheiro, status, relações. Somente com a compreensão e vivência do princípio de serviço e amor é que encontramos nosso norte, nosso chão e nosso lar. Ninguém, realmente ninguém pode ser feliz sozinho. Ninguém, realmente ninguém pode ser feliz sem fazer a felicidade dos outros.

(Texto recebido em 9 de março de 2001.)